5.4.08

Crônica da Tinê - As (três) graças


As Graças não se visitam mas sempre se esbarram pelas ruas onde trocam sorrisos com perguntas gentis. "Seu filho melhorou?", "Como foi o churrasco?", "Anda sumida, viajou?" Desta vez se encontraram à porta do armarinho e como não estavam corridas havia tempo para amenidades entre amostras de linhas e fechecleres. Costuma acontecer de apenas uma falar enquanto as outras meneiam a cabeça, franzem o cenho, abrem a boca em ó e arregalam olhos de espanto concordante ou reprovador. Também evitam entre si perguntas pessoais apesar de, quando há uma curiosidade premente, serem exímias em jogar palavras no bastidor até uma delas cair no ponto e acabar expondo o nó da trama.

As Graças quase nunca são as mesmas. A magricela usa óculos de grau fundo de garrafa devido ao crochê. A baixinha gordota só anda de óculos de sol com aro 'gatinho' branco e há anos tricota o mesmo pulôver. A alta usa lente de contato lilás e corta a linha de bordado no aparelho dental. Também pode a nanica usar lentes grossas por conta dos livros, a magrela colecionar lentes coloridas por vaidade, a compridona ter os dentes perfeitos e miopia precoce, e todas detestarem trabalhos manuais. Mas a trinca enxerga muito bem os parênteses indizíveis das falas e preenche as lacunas com ganchos próprios. Fechecler fechado, botão caseado, em boca fechada não entra mosca.

As Graças parecem flutuar acima do grafismo da calçada. Elas se posicionam inexatas nos vértices sem fixarem os pés nas pedras brancas e pretas. Ás vezes se revezam em diagonal. Um passo à frente seguido de um recuo para a troca de lugar. Elas bamboleiam os corpos em harmonia. Um braço à esquerda se estende, a mão toca o ombro vizinho e se recolhe ao peito. Outro braço repousa na cintura à direita. Aquela mão pega o ar e se fecha em punho. Esta se abre para longe. De uma boca escapa um sorriso. Outra boca ostenta todos os dentes. Aqueloutra esconde os pinos ortodônticos cor-de-rosa. Um dedo em riste toca a mediatriz triangular que se eleva do chão enquanto o da vizinha ajeita os óculos. Uma se curva e se endireita ligeiro ao jogar a cabeleira para trás. A de cabelo em corte 'chanel' fica de perfil. A de lenço que disfarça os bobes reclina a cabeça. O que uma tem de menos se compensa na que tem a mais.

As Graças se despedem com beijos vaporosos. Uma atravessa a rua na direção da ponte. Uma segue em frente. Uma esqueceu de algo e retorna ao interior da loja. Com igual número de passos elas mantêm o triângulo que se expande como balão captado por lentes que ampliam pensamentos. "Coitada, o filho destrambelhado só dá trabalho com a...", "Filha da mãe, nem nos convidou para o churrasco, aposto como só teve...", "Mulher tapada, viajou prá capital coisa nenhuma, foi chorar em cama vazia por..." A graça divina interveio em favor das Graças: os balões-legendas se pulverizaram no momento exato em que o filme acabou na máquina.
Tinê Soares - [02/04/08 - 18:12:45]

Um comentário:

  1. o botão caseado . é um encontro homem / mulher , o botão entra na casa. há um nó, um 'prendimento' no laço. uma soltura quando desfeito - quando solta-se o botão. mas vou verifcar nos livros o quê mais significa o botão na casa.

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