30.10.07

Radicalização Periférica


(Publico aqui um artigo do meu amigo Professor Marco Aurélio Nogueira que acredito traz uma luz nova no debate sobre as questões que aparecem no filme "Tropa de Elite".
O artigo foi publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo do dia 27 de outubro. Marco Aurélio escreve (e pensa) muito bem).
O Estado de S. Paulo, 27 de outubro de 2007, p. A2.
Logo no início de Tropa de Elite – o interessantíssimo e polêmico filme de José Padilha – fica-se sabendo que polícia, crime e tráfico fazem parte de um mesmo sistema: entrelaçam-se como fios de novelos gêmeos, corrompem-se e se degradam mutuamente. Quase de imediato percebe-se também que o entrelaçamento é mais profundo. Nos morros e na cidade, os desejos de consumo, os estilos, a linguagem e os comportamentos sugerem uma ausência de distância social, ainda que seja escandalosamente ostensiva a disparidade de renda, educação e oportunidades entre aqueles mundos unidos pela diluição ética e pelo ofuscamento do futuro.

Os morros retratados no filme são ambientes abandonados, assistidos por uma ONG bem-intencionada, mas não pelo poder público. Jovens burgueses e de classe média compartilham espaços e drogas com jovens pobres, marginais e crianças, misturando de modo louco universos que, na base da sociedade, são incomunicáveis e se rejeitam com veemência. Parece não haver classes naquela “comunidade” unida pelo desejo de sobreviver, de consumir, de “fazer algo” e acontecer, sempre que possível contra o Estado (a polícia). Mas a exclusão, a miséria, a falta de perspectivas explodem por toda parte, a evidenciar um dilaceramento social extensivo. A violência generalizada é seu fermento, a dificuldade comunicacional seu combustível. Não é somente a truculenta e fascista elite da tropa que se revela desqualificada para propor uma saída: todos – traficantes, universitários, políticos – chafurdam na mesma impossibilidade de ação positiva, dramaticamente abraçados.

Pode-se até dizer que o filme exagera na apresentação da violência, que nos morros também há gente decente dedicada a alcançar patamares consistentes de dignidade e sobrevivência. Que a polícia não é só aquilo que se vê, uma corporação corroída pela corrupção, pelo despreparo e pela luta interna. Como toda obra de arte, Tropa de Elite dá margem a muitas interpretações. Pode ter fascinado alguns brucutus de plantão e seduzido aquela parcela da população que acredita na lei do cão, mas não deixa ninguém indiferente. Ao desnudar uma situação lancinante, explosiva, faz um irrecusável convite à reflexão. Incentiva-nos a pensar no Brasil atual, onde o moderno está ao mesmo tempo radicalizado (repleto de tecnologia, individualizado e desinstitucionalizado) e aprisionado pela condição periférica do país, que nos mantém com boa parte do corpo submerso na pobreza, na ignorância e no atraso econômico-social.

O entrelaçamento destas duas “lógicas”, a da modernidade radicalizada e a da condição periférica, a do celular e a da miséria, dá cores ao Brasil atual. Voracidade produtiva e consumista, desejo contínuo de exposição, diversão e velocidade, conectividade fácil, desengajamento, fuga do Estado e da política – são fenômenos derivados do moderno que se radicaliza. Vida que escoa pelos dedos, sem direção e sem formato estável: “líquida”, na sugestiva linguagem metafórica de Zigmunt Bauman. A condição periférica, por sua vez, nos encharca de pobreza, de violência, de luta insana pela existência, de indigência e não-reconhecimento, de massas subalternizadas, vistas como ameaça e problema, não como fato humano ou gente. A interpenetração das duas condições produz um tipo de vida: dinâmica, frenética, desigual, efêmera, inevitavelmente insegura e perigosa. Se a inovação tecnológica infrene apaga as distâncias de tempo/espaço, ela ao mesmo tempo polariza a convivência, separando as pessoas, por exemplo, em incluídos e excluídos digitais ou informacionais. Ao passo que, para uns, drogas e celulares são meios de vida, para outros são fontes de prazer e entretenimento.

Encontramos traços deste modo de ser por onde quer que caminhemos. Ou será que as dificuldades e incertezas da escola e da educação têm a ver somente com fracasso pedagógico ou despreparo dos professores? A longa e interminável crise do Congresso seria por acaso o resultado exclusivo da mediocridade da classe política? E o que dizer da condição falimentar dos partidos? Podemos nos contentar em atribuir as seguidas tragédias (aéreas, rodoviárias, urbanas, hospitalares) de nossos dias somente aos “sistemas” e a seus operadores?

A modernidade radicalizada periférica está pulsando em nossos nichos sistêmicos e existenciais. A vida líquida, por aqui, é ainda mais informe. Não necessitaríamos de filmes como Tropa de Elite para saber disso. Bastaria olhar para os ambientes em que julgamos estar nossas maiores virtudes: nossas instituições, da família aos sindicatos, passando pelas escolas e pelos tribunais, pelo mercado e pelo Estado. Tudo parece meio desfocado e fora de controle: em transição acelerada, recomposição e “sofrimento”. Há coisas novas despontando, coisas velhas ruindo com estardalhaço, outras fenecendo em silêncio. O tom dominante é de dúvida, medo, incerteza e insegurança, mas não há como desprezar a potência positiva daquilo que emerge, nem achar que todos os cidadãos se deixaram contaminar por igual e não se orientam mais por nenhum valor cívico (a honestidade, a decência, a integridade) ou aposta política.

A questão, como sempre, está na contradição e na ambivalência. Aquilo que se mostra mais “emancipador” – a liberdade de escolha, a mobilidade, a democratização dos relacionamentos – também traz consigo novas injustiças e a reiteração de problemas já conhecidos: vantagens e oportunidades desigualmente distribuídas, hierarquias e assimetrias de novo tipo, exclusões inaceitáveis.

A época é estranha, turbulenta, difícil de ser decodificada. Ela está a nos dizer que problemas e conflitos não podem ser resolvidos por medidas unilaterais ou discursos fáceis. Dependemos sempre mais de pensamento crítico articulado e de políticas inteligentes, contínuas, democráticas, que valorizem as pessoas e produzam resultados sustentáveis.

2 comentários:

J.BOSCO disse...

Tropa de Elite é realmente questionador,radical não pela violência esplícita, mas pela coragem dos roteiristas e diretores.O filme vem de um documentário produzido em 1997 e 1998, com depoimentos de traficantes,policiais e vítimas, de uma situação que até agora ninguém se preocupa, e acaba ocupando muito espaço.A violência é dura e a corrupção não tem freios, o sistema ajuda essa engrenagem financeira de todos os lados.Se o Padilha colocasse um magistrado no filme,liberando sentenças pra traficantes, certamente o filme seria vetado.Tudo que o filme mostra é uma realidade costumeira de telejornais noticiando confrontos entre polícias e traficantes nos morros do Rio e nas periferias de cidades pobres, excluídas de educação,lazer, saneamento básico, hospitais e moradias decentes.A classe média fuma e cheira,e sabe que isso sustenta o tráfico,hoje há um descontrole total dos valores morais,nem família,nem igreja,nem educação conseguem mostrar respeito nem virtudes que o ser humano precisa aprender desde cedo, resultando numa tragédia social. A ficção é mais realista e assustadora que a nossa realidade.
parabén pelo texto
abração

J.Bosco

LIBERATI disse...

Caro J.Bosco, os artigos doProfessor Marco Aurélio Nogueira passarão a ser publicados também aqui neste blogue, o que nos honra muito e nos enriquece o pensamento.
um abraço