15.2.08

Crônica da Tinê - Solfejos


Ele não dormiu. Tentou. Desistiu antes de clarear o dia. Foi para o computador para enviar recados. Desligou. Deu vontade de tomar cocacola. O cigarro acabou. Foi ao bar próximo. Fechado. Quando sentiu o cheiro de café com leite e pão quentinho na manteiga sobre a chapa, não resistiu e bateu na porta. Barulhão. Porta de aço escandalosa. Seu Antônio perguntou: caiu da cama? Ainda sonado, respondeu: passarinhos e má-digestão. O outro riu - Entre!

No sábado tentei assistir a um filme. Cochilei. Reprisam filmes. Então procurei um desenho animado que não fosse o debochado South Park. Tive sorte. Encontrei o do pinguim infeliz por saber sapatear, ao contrário dos de sua espécie que só cantam. Bonito. Imagino quantos rabiscos foram necessários para cada minuto de cena. Realismo gráfico. Reggae ambientalista. Até à cena final com os humanos vistos de longe. De muito longe. Humano é 'flórida', diria Bigger. Nada de Fred Astaire, diria Longer. Reggae e mambo, diria Uncutter.

A afilhada ao telefone reclamou: não gosta de texto minúsculo, como culinária francesa em que, depois de comer, quer atacar um hambúrguer. Nem na escola foi dado o direito de escrever um único camarão rodeado de sete gotas de molho raro e uma estúpida folhinha para enfeitar. Ouvi, calada. Quantas páginas seriam escritas por um francês para a receita do tal crustáceo? A tia disse que era preguiça mental. Argumentei: tempos uébicos, você não percebe, mas na tela correm linhas incessantes, faz mal. Ela não ouve e continua. Curto hai-kai. Expliquei, isto é poema, não é contar história. Então, Dinda, escreva normal e use um trecho no virtual. Pensei: virtude é manter o sapateado entre cantores. O que é escrever normal? Se eu soubesse cantar!

Ele me pediu biscoito de polvilho frito na hora. Neguei. Massa grudenta e cheiro de óleo quente a esta hora? Além disso, engorda. Mas você também gosta, ora! Sim, mas não estou a fim. É cedo. É domingo. As ruas desertas dão trânsito livre aos passarinhos. Faz sol, por que não vai espiá-los? Um cheiro de bolo assado atravessa a veneziana. Vem da fábrica de massas, faz biscoitos para a semana. Ou será a vizinha madrugadora fazendo bolo porque nunca diz não? Assim, sem mais, afirmo: não!

A garota quer ser bióloga, dizia ao telefone, mas teme os insetos. Sugeri o ramo da cervejaria. Bicho esquisito, só ao microscópio. Cevada, malte, levedo. O fermento é a vida. É preciso viver. O chinês manda mensagem no biscoito: no bater das asas, a borboleta muda de cor. Que nada! não é a borboleta, é a luz que muda ao incidir em diferente ângulo sobre a asa. Levanto-me e vou fazer bolinho de espinafre, não sou tão chata.

Outro dia, fotografei por todos os lados uma mariposa. No lado da luz, ficou assim. No lado da sombra, ficou outra. Ela não mudou, eu é que mudei. Será que só me veem em preto e branco? Minhas asas não cabem nesta realidade apertada. Para qualquer lado que me vire, ainda assim não consigo abrir as asas. Não sei cantar nem quero fazer biscoitos. Para piorar, não sei em qual ângulo fico neste mundo e em que isto afetará o próximo se eu mudar no plano em alguns graus. Se os pés formigam, sapateio: não e não.

Quando estou bem, não caibo em mim. Quando estou mal, não caibo nos outros. Quando me sinto leve, voo. Quando as cortinas deixam o sol entrar, relembro a praia, catava estrelinhas-do-mar e saía em disparada a mostrar aos adultos, numa alegria louca. Quando me fecham as cortinas, deixo aos outros o estrondo das ondas sobre as pedras. O que pouco me adianta, pois nunca pisaram nos espinhos escondidos sob a areia até aprender a evitá-los a caminho do mar. Em voo baixo, suporto meu peso, resumida ao preto e branco. Sei que todas as cores estarão comigo. O único problema é que nunca saberei lá-lá-lá-ri-lá-rá-rááá.

Ele dormiu. No sábado, assisti ao desenho de Mamble. A afilhada avisou: não gosta de texto minúsculo, vai atacar um livro. Ele comeu os bolinhos, não sobrou um. Ao telefone, a garota dizia que vai pesquisar a farmacopéia. Outro dia, uma imensa mariposa fez poses. Quando estou bem, não caibo em mim. Eles riram e cantaram por mim.

[Tinê Soares - 10/2/2008 - 7:14:20]
N.R. A ilustração desta crônica é uma foto de uma mariposa "Bruxa" clicada por Tinê.

9 comentários:

LIBERATI disse...

Belo texto Tinê!
Aproveito e vou pegar uma carona na sua crônica. Engraçado é que eu fotografei também uma mariposa "Bruja" no Museu da Revolução em Havana - e é interessante saber que esse Museu fica no antigo Palácio Presidencial ocupado por Batista no fim da década de 50- e lá dentro tinha uma Capelinha, e não é que a tal Brujita estava bem em cima da plaquinha que indicava a capela!
Ela ocultava o texto. Evidentemente era uma mariposa atéia e revolucionária.
Bjs e bom fim de semana!

TS disse...

Acho que na esfera telepática nos damos carona. Rss.

Dizem que a "Bruxa" traz falta de sorte; para mim sempre foi ao contrário! As maripas, diferente das borboletas, escondem sua beleza.

Se o crítico-sociólogo aprovou, então 'tá bão'!
Bom fds e curta sua alegria em família!

P.S.: Pinguim come mariposa? Tô preocupada...

Anônimo disse...

Adorei a idéia dos solfejos e olha só: "Ele não dormiu" é a minha história quase que cotidiana (rs). Mas agora, estou em pré-abandono do cigarro. 2- Adoro o Happy Feet. A animação é fantástica e a trilha anos 80, nem se fal! 3- Curto demais Hai Kais e nunca consegui fazer um que prestasse (rs). parece fácil, mas é difícil pacas! 4- Eu sou biólogo! :) 5- Biscoito de polvilho frito na hora? Como teve a coragem de negar?????? 6- A foto da mariposa ficou fantástica. E não é fácil fazer fotos assim. 7- BRILHANTE DESFECHO para a crônica. Beijaço.

TS disse...

ED: 1 - É preciso ser transcendental p/ o Hai-Kai; o Liberati fez alguns mas não publicou neste blog; 2 - O maledetto do cigarro vai e volta; 3 - Alguns pinguins não tem pé feliz, vivem caindo sobre a geladeira; 4 - Biólogo-video-maker usa figurante microbiológico?; 5 - Outros solfejos virão, espero. Bjim.

Anônimo disse...

solfejos sao raios de sol soltos por uma voz iluminando as variações de um tema... é preciso estar pronto para tamanho desafio. Aqui vejo toda essa luz.

Anônimo disse...

é mesmo...os pequenos cristais do cotidiano nos faz pensar as vezes que a humanidade está esquizofrênica. Ou seríamos nós?

TS disse...

Josemauros: seu comentário parece uma oração; mas minha luz é reminiscência dos exercícios de Czerny na infância, que eu odiava.

Elaine: eu sei que sou "meio" esquizo - mas, quem não é? - (rss); gosto da idéia dos cristais: reflexos e cores infinitas.

Liberati: caro, anda ocupado, heim! boa semana procê.

Bijus p/ os três.

ze disse...

bolinhos chineses com frases lembram o papel para engulir de frei Galvão o papelzinho escrito algo que se come: espinafre do marinheiro do desenho que salvava a Olívia. você é vista como uma mineira autêntica com uma cozinha transcendente - cozinha única de couve verde diária. Artista, faz fotos lindas. E escreve também. Asas são de anjos. Você é humana.

ze disse...

Liberati, então a bruja fez pose em Havana !?