15.4.10

Homenagem e dica do Gerdal: Benedicto Lacerda é tema de livro escrito por Jadir Zanardi e lançado nesta quinta em Niterói




Se nada acrescentou à obra de Sinhô, o samba "Dá Nele", feito na esteira do sucesso de "Dá Nela", de Ari Barroso, propiciou a Benedicto Lacerda, pela primeira vez, no limiar dos anos 30, o seu ingresso num estúdio de gravação. Acompanhado do conjunto Gente do Morro, o admirável flautista então estreava como compositor, no outro lado do disco, gravando "No Sarguero", música que, como a de Sinhô, teve a interpretação de Ildefonso Norat. Foi um tempo em que, avesso ao tipo de execução da nossa música popular por orquestras de jazz, Benedicto organizou esse conjunto para, por seu intermédio, mostrar como se deveria acompanhar com fidelidade o ritmo brasileiro. O mesmo Benedicto que, desdenhando "Copacabana, princesinha do mar...", diria: "Bonitinho, mas não é samba."
        Firme de posições e categórico de opiniões, assim se caracterizava esse bravo fluminense de Macaé, onde nasceu em 14 de março de 1903. Lá, com oito anos de idade, integrou a banda Nova Aurora, tocando flauta de ouvido, aprendizado mais tarde aprimorado, no Rio de Janeiro, com os ensinamentos de Belarmino de Sousa, pai do sambista Ciro de Sousa. O mesmo Rio de Janeiro onde, aliás, morreria, no Hospital São Silvestre, em Santa Teresa, vítima de câncer pulmonar. Veio bem moço com a família e, na antiga capital federal, fez a sua destacada carreira. Foi músico da Polícia Militar de 1922 a 1927 e, em 1929, participou de um regional, o Boêmios da Cidade, com o qual esteve na cidade de São Paulo, apresentando-se com Josephine Baker. No mesmo ano, com o cinema falado, passou a tocar em grupos de choro, como flautista, e em orquestras, como saxofonista, revelando-se um virtuose a plenos pulmões.
        À dissolução do Gente do Morro seguiu-se o advento do seu famoso regional, de cuja primeira formação também constavam Gorgulho (Jaci Pereira) e Ney Orestes, aos violões, e Russo do Pandeiro. Em 1937, Carlos Lentine substituiu Gorgulho e, a partir daí, o grupo ganharia ainda mais sustança com a chegada de Dino e Meira, além de, cada um a seu tempo, Popeye e Gílson, pandeiristas. Essa constituição se manteve até 1950, quando a liderança passou de Benedicto Lacerda, já de saída, a Canhoto, transformando-se no regional do Canhoto, com Altamiro Carrilho assumindo a condição de titular da flauta. Com os seus colegas de conjunto, Benedicto teve chance de acompanhar cantores de primeira grandeza no estrelato popular, como Francisco Alves, Orlando Silva, Sílvio Caldas e Carmen Miranda, em outras tantas idas a estúdios e programas de auditório, além de incursões, em 1940, nos tilintantes salões dos cassinos da Urca e de Copacabana, redutos do "divertissement" mais aprumado.
        Do Benedicto compositor nem é bom falar. Ou melhor, é ótimo cantar, recordando e revivendo as suas belas canções, para o carnaval ou não, na inspirada companhia dos seus muitos parceiros. Quando o seu sopro silenciou para sempre, no domingo de Momo de 1958, ele já havia legado ao nosso cancioneiro um sem-número de valsas, marchas e sambas notáveis, que logo caíam no agrado geral. "Eva Querida" (com Luís Vassalo), "Querido Adão" (com Osvaldo Santiago), Meu Coração a Teus Pés" (com Jorge Faraj), "Amigo Leal" e "Despedida de Mangueira"  (com Aldo Cabral), "Acorda, Escola de Samba", "Minueto" e "A Lapa" (com Herivelto Martins), "Falta um Zero no Meu Ordenado" (com Ari Barroso), "Lero-Lero" (com Frazão) e "Verão no Havaí", "Coitado do Edgar" e "Espanhola" (com Haroldo Lobo) formam apenas um pequeno leque da sua memorável produção, marcada ademais por introduções instrumentais, com a sua flauta em alto relevo, que valorizavam bastante as gravações da época. Figura ligada ao Tenentes do Diabo, compôs, em 1953, a marcha "Vai Haver o Diabo", uma espécie de hino do clube.
        No seu livro "Parceiro da Glória", David Nasser informa que, em "Normalista", samba que fez em 1949 com Benedicto, extraiu versos de um caso-verdade de proibição de casamento, ocorrido no Acre. Havia o veto na época do Instituto de Educação, e a moça em questão, filha de um coronel interventor nesse Estado e namorada de um tenente, esbarrava ainda na intransigência paterna, a muito custo vencida. Em um dos muitos exemplos de como a nossa língua se revigora com o "eureca" dos seus letristas, Nélson Gonçalves, em grande interpretação, serviu-se desse episódio da vida brasileira como ela era para difundir a expressão "brotinho em flor", de boca em boca a partir do samba e até merecedora da atenção de Carlos Drummond de Andrade numa crônica anos depois. Outro exemplo, partido de Benedicto Lacerda e Humberto Porto, foi a polêmica marcha "A Jardineira", adaptação de um velho motivo baiano e uma das mais cantadas na folia de 1939. Nela, o trecho "foi a camélia que caiu do galho" logo se tornou um bordão popular para saudar a passagem de ilustres transeuntes pela rua da amargura, como governantes e ministros então recém-afastados dos seus cargos.
        Diretor musical da RCA Victor em meados dos anos 40, Benedicto Lacerda gravou com Pixinguinha uma série largamente apreciada de músicas, fazendo com a flauta a primeira voz e o eminente colega, ao sax, a segunda, em contraponto, num total de 17 discos de 78 rpm. Embora outros autores fizessem parte desse rol, "Proezas de Solon", "Um a Zero", "Naquele Tempo" e "Sofres Porque Queres" são algumas das relíquias então gravadas do generoso Pixinguinha, o qual, segundo consta, teria dado parceria a Benedicto, por acordo entre ambos, em reconhecimento do empenho do amigo pela divulgação da sua obra num momento em que Pixinguinha já perdera a embocadura para a flauta. Não é, portanto, de surpreender a excelência do trabalho desses dois mestres aplicadíssimos e devotadíssímos aos seus instrumentos, até porque Benedicto, por exemplo, quando à frente do regional, era muito exigente com os seus comandados, especialmente o pandeirista, norte rítmico das cordas e dos sopros em tal formação.
        Por duas vezes presidente da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (Sbacem) e um dos fundadores da União Brasileira de Compositores (UBC), Benedicto Lacerda sempre defendeu a dignidade do músico brasileiro, criticando, já no seu tempo, "as garras aduncas do potentado econômico, quase sempre travestido de protetor desinteressado dos artistas". Hoje, infelizmente, é mais um daqueles nomes importantes do passado que quase não são tocados, vítima dos ouvidos moucos do mercado ao "som na caixa" de qualidade. Um infortúnio póstumo para o nosso "Bela Lugosi", epíteto dado a Benedicto por colegas do ramo e que ele detestava.
        Um bom dia a todos. Muito grato pela atenção (também à dica, a seguir).
 
     *** 
      
      Obs.: dedico este texto, especialmente, ao amigo Jadir Zanardi (foto acima), que me destinou, generosamente, no ano passado sem que ainda nos conheçamos em pessoa, um exemplar do seu livro "Benedicto Lacerda - E a Saudade Ficou", da editora Muiraquitã, lançado inicialmente em Macaé, também cidade natal desse advogado e pesquisador de MPB, autor de importantes textos informativos em encartes de discos da Revivendo. Nessa função, ele substitui o saudoso professor guarantaense Abel Cardoso Jr, de tão valiosa colaboração com esse selo do Paraná. Também a Jadir, especialmente, dedico o "link" abaixo, em que se ouve uma bela interpretação instrumental da valsa "Boneca", de Benedicto Lacerda e Aldo Cabral, pelo conjunto paulista Choro das 3. "Benedicto Lacerda - E a Saudade Ficou" tem novo lançamento, nesta quinta, 15 de abril, a partir das 19h, na Livraria&Café Labyrintho, em Niterói ("flyer" acima). 
 http://www.youtube.com/watch?v=jfM8_nyr2no&feature=related
           

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