27.10.07

Quem tem medo do Grande Sertão?


(Republico aqui um pequeno ensaio meu sobre "Grande Sertão - veredas" para os novos amigos navegantes. Os históricos amigos do blogue, de certo compreenderão - esse meu sítio, afinal é uma espécie de recomeço. Publicarei em pequenas doses, como fiz com Salinger. Prometo novas vinhetas no estilo do Sertão, esse universo tão diverso.)

Quem tem medo de Guimarães Rosa?

Conserva a aura de livro difícil diante do qual o sujeito hesita e diz para si que um dia vai encarar. Não é só a aparência taluda do
Grande sertão: veredas que espanta. Muita coisa intriga, tanto que sua fortuna crítica é imensa.
Apesar de reconhecido hoje como um monumento da língua, teve recepção problemática. De cara foi catalogado entre "ilegibilidades" e
mais tarde considerado "um matagal indevassável". Um sujeito zombou: "Ora, onde já se viu sertão em Minas?". Em 1958, uma revista
chegou a publicar uma reportagem com o título: Escritores que não conseguem ler Guimarães Rosa. Gente graúda das letras
confessou-se incapaz.
Perto de sua morte, triste, reclamava que tinha sido chamado de aristocrata e acusado de inventar palavras. Lamentou: "Não as invento
totalmente. Para escrever Grande sertão passei um mês inteiro no mato, em lombo de mula, catalogando num caderninho o linguajar do
povo sertanejo (…). Aristocrata não faz isso".
Suspeita-se que esse livro causou um vasto medo diante da novidade que de fato era. Tanto nos ácidos críticos como naqueles que não
o leram. Não podia ser diferente: o romance é uma explosão da invenção, na forma, na técnica e na linguagem. Foi composto como
narrativa única e fragmentária do ex-jagunço Riobaldo Tatarana. Seu ouvinte, que nunca intervém, é o próprio escritor, tratado com
reverência: "Sabe muito em idéia firme, além de ter cara de doutor".
Às vezes parece que baixou um caboclo freudiano no narrador, e sua fala se torna caudalosa: "A lembrança da vida da gente se guarda
em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não se misturam contar seguido,
alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância".
O resultado do temor que esse livro inspirou é que várias gerações se privaram da mais rica experiência estética da nossa literatura.
Uma das chaves é saber que Rosa partiu da sua experiência de menino, de soldado, rebelde e médico. Reuniu causos. Um dia revelou
como se imantou de maravilhas: "Nós, gente do sertão, somos contadores de histórias desde que nascemos. Contar histórias faz parte
do nosso sangue, é um dom de berço que recebemos para o resto da vida. (…) Que mais se pode fazer nas horas livres no sertão (…)
senão contar histórias?" Esotérico, segredou: "Por isso nos acostumamos desde cedo à imaginação e ela se integra em nossa carne e em
nosso sangue, fazendo parte de nossa alma, pois o sertão simboliza também a alma dos que o habitam". Numa entrevista comentou o
problema que esse lastro precioso lhe trazia: "Disse para mim mesmo que não se pode criar literatura com o material do sertão. Só se
pode escrever a seu respeito em forma de lendas, contos em que imperem a fantasia, as confissões pessoais". Conclui-se que Rosa, fiel
à tradição oral de uma espécie de "dialeto geralista", não se deixou prender a uma camisa-de-força. Num outro depoimento o autor deu
lições de ourivesaria: "Em primeiro lugar vem o meu método de usar cada palavra como se ela tivesse acabado de surgir pela primeira
vez. Retiro-lhe as impurezas da fala corriqueira e devolvo-lhe seu sentido vocabular primevo. Por este motivo – e este é o segundo
elemento – incorporo certas particularidades dialetais da minha região (Minas Gerais) que não constituem parte da linguagem literária.
Incorporo-as porque são peculiaridades originais, que não estão ainda gastas pelo uso e são na maioria dos casos caracterizadas por
uma extraordinária sabedoria lingüística". (Continua no próximo capítulo)

4 comentários:

Anônimo disse...

caro liberati, gosto do tema e adorei o título; não sabia q vc tinha este ensaio...
mas, porque a ilustra bonita (graficam/t falando) está tão pequena?
se fosse um simples traço... não é!

é bom divulgar o "veredas"; mts não o entendem pq nunca tiveram a chance (ou a boa-vontade) d andar pelo interior e conversar c/ a "gente da terra": a linguagem é mistura de língua inculta c/ poesia natural!

e existe sertão mineiro, sim.
algs mineiros do leste enciumados costumam, até, dizer q "aquelas bandas já são bahia..."
[obs. d carioca, :))]

O Brasil é cheio de Tataranas.

Inté!

LIBERATI disse...

Querida Tinê a ilustra é imensa, cabe em duas páginas, não sei porque este blogue tem um espaço muito pequeno pras ilustras. Um dia encontro um espaço bom pras ilustras, talvez o sítio que minha filha e meu genro estão fazendo pra mim.
Inté, sertão vem aí e muito, o ensaio continua.
bjs

Anônimo disse...

A vida do Rosa sua entrada / saída da Academia de Letras é impressionante. Ele profetizando antes...três dias... Parece a morte do T. Neves: 'até aí morreu Neves' costuma-se falar. Por quê? Parece a morte cantada antes. Sei lá. a ilustra 'tá uma beleza. zé

LIBERATI disse...

O Rosa era profeta, médico rural, alma generosa, mineiro maneiro.
Grande Rosa Sertão - veredas!
Um abraço e boa semana