
Em terras mineiras, um dia frio e nebuloso é bom para tomar vinho com canela e pensar em palavras que evocam imagens antigas. Cerúleo. Carmesim. Nácar. Cinábrio... Foi assim que de repente lembrei de uma colega do colégio, de quem nunca mais tive notícia. Ela veio de Barbacena para estudar no Rio, anos depois casou com um sujeito de Pirenópolis que ascendeu numa multinacional e se mudou para Bruxelas. Dela ficou esta história.
O normal seria visitar exposições espalhadas pela cidade. Dona Lêda não tinha tempo para isso. Muito menos aturar estrelismo. Gostava de avaliar por si mesma. A Escola de Belas Artes funcionava na rua Araújo Porto Alegre. Decidida, sem conhecer ninguém, dona Lêda desceu porões em busca de um artista a preços módicos. Olhos circularam sobre trabalhos acadêmicos e telas em progresso de aspirantes ao sucesso, daqueles que na época sonhavam com uma bolsa de estudos em Paris ou em Madri, pois viver de arte só enche a barriga de alguns sortudos, depende menos de talento ou de propostas estéticas originais. Dona Lêda queria algo bonito, bem feito, poucos cânones. Podia ser moderno, desde que ela pudesse reconhecer sua filha em todos os ângulos e não ter de adivinhá-la sob grossos respingos acrílicos de vermelho-cádmio com uma metralhadora grafitada na mão e corvos goyescos trançando os cabelos! Ela imaginava a filha em terra-siena-natural com toques de vermelho-veneza e amarelo-cromo sob um céu azul-cobalto com nuvens branco-titânio. Refez o trajeto por dois dias. Já pensava em desistir de achar o eleito para registrar a alma da filha quando lhe indicaram um vulto no fundo do corredor escuro, "premiado, chegou há pouco da Itália".
Quando ainda se referiam às "meninas-moças", o sonho inatingível da maioria delas era debutar no Copacabana Palace, e o máximo seria receber uma nota na coluna do Ibrahim. Mas elas se contentavam com um diadema na cabeça, vestidas em crepe esvoaçante para valsarem o Danúbio Azul com um estranho imberbe e desajeitado, em algum clube de bairro. Acontece que a filha de dona Lêda não era uma selena mas vivia no mundo da lua, quer dizer, vivia na dela, em cratera própria, com aviso "Não entre" em letras pop-fluorescentes na porta do quarto. Só queria ler, desenhar coisas estranhas no diário e escrever cartas. A mocinha curtia em segredo as festas das filhas das amigas da mãe (para observar), se pavoneava toda para flertar às escondidas (para experimentar), e concluía que aquilo tudo era... burguês demais? A mãe não sabia de onde ela tirava certos conceitos, estava mais preocupada com a tradicional festa desde que a filha fizera treze anos, deu-lhe um anel de ouro aos catorze como preparativo para os quinze, e agora tentava argumentar que era um ritual importante mostrar a todos que se tornara uma mulher, quem sabe, diante de possíveis candidatos a um bom casamento... - "Nem morta!", taxou a garota.
De certa forma, foi um alívio. Bancar um baile seria contrair uma longa dívida. Quinze anos! Precisava fazer algo marcante. Fotografia, não, já tinha se tornado habitual desde as "carinhas de bebê" e o álbum anual escolar. Tinha duas opções: excursão à Disneylândia ou... um retrato pintado? A mãe foi astuta. Atitude burguesa à parte, atingiu em cheio a vaidade adolescente alimentada a muito livro de arte, e a curiosidade dela em ver de perto um ateliê de verdade. A filha topou. Mais excitante do que ir a estúdio fotográfico fazer caras diversas entre falsas colunas gregas seria servir de modelo para um quadro. O pai concordou, desde que a mãe montasse guarda durante o processo, como se fosse concurso de misse, embora a futura retratada não se enquadrasse nos padrões de beleza.
(continua)
Tinê Soares
3 comentários:
Se é quem estou pensando, aquela em Cosme Velho, ela não era "tão" lisa assim. A ilustração medieval, em sépia, ficou de acordo. Quero ler o resto, quando será?
M.R.L.
E já estou curioso com a continuação. Uma pintura. Sabe que engraçado? É que ganhei uma este ano de um amigo artista plástico. Mas ele pegou uma foto minha de 20 anos. Olho e não me reconheço (rs). Mas está aqui, devidamente emoldurada e dependurada na parede do quarto. Ainda fico olhando para a barba que usava (rsrs).
Pois é amiga... acho que ia preferir o baile...huuummm...não abria mão de um bailinho de debutante nos meus tempos de moçoila...dançar de rosto coladinho...valsar...uau... mas hoje...ligada que sou em fotos...acho que ia me retratar também... vamos ao fim já desta história...vamos esperar quanto? Tinê querida, sempre me encontro em algum cantinho nas suas narrativas... vejo com isto que já vivi muito...graças a Deus...beijos...
Postar um comentário