10.8.08

Em nome do pai


(Aproveito o dia dos pais para homenagear o meu, que se foi no ano de 1996, aos 76 anos de idade. Republico então uma crônica, que escrevi não me lembro quando, na qual recordo alguns poucos aspectos dessa pessoa fabulosa que era meu velho. Ele gostava de contar causos, acho que se eu conseguisse lembrar deles, faria um bom livro)
Encontrei meu pai na esquina de Ouvidor com Rio Branco. Vestia um terno azul marinho,estava com barba feita, cheirando a “Aqcua velva”, cabelos alinhados, bigode aparado de Errol Flynn. Disse que estava com saudades, que nos últimos tempos aparecera na casa de minhã mãe, só para dar uma olhada em como andavam as coisas.
-Ela continua muito ativa, xinga os politicos na hora do Jornal Nacional. Reza muito ainda pelo bem estar dos netos, católica fervorosa e ainda lê jornais aos domingos. Que figura! Disse isso em meio a uma tosse que sempre o acompanhou .Perguntou seu eu tinha cigarros. Decerto esqueceu que eu não fumo há anos e que só tive uma recaída logo depois que ele tomou o rumo da longa estrada, mas larguei de sopetão e nunca mais. Fomos a um bar e ele pediu um maço de Continental sem filtro. O rapaz do balcão irformou que não fabricavam mais essa marca. Escolheu outra, ao acaso. Arrancou o filtro, acendeu e soltou uma bela baforada. Perguntei se queria beber alguma coisa. - Uma cerveja bem gelada iria bem. Disse com aquele sorriso de menino levado.
- E você? Indagou.
Eu disse que iria de Coca-Cola.
-Isso vai acabar fazendo um buraco no seu estômago… “L’acqua nera dell’ imperialismo” Resmungou em italiano como fazia de vez em quando…
Após um silêncio de ouvir o ruído de uma pena ao cair no chão, confessei a ele que tinha muitas perguntas para fazer, mas que no momento estava meio perplexo e tinha me dado um branco. Ele concordou que em certas situações a gente fica mesmo perdido. – São as emoções. Garantiu.
– Muitas vezes eu também queria te falar de tantas coisas e perdia oportunidade, estava muito cansado.
De chofre, falei que quando o perdi de vista naquele horizonte poluído da nossa cidade, fiquei de tal modo traumatizado que algum tempo depois, eu não me lembrava o ano em que aquela fatalidade aconteceu. Só conseguia recordar a hora e o dia , mas o ano se apagou na minha memória, virou poeira. É esquisito, mesmo depois que alguém me informou do ano em que ele havia partido , eu não consegui fixar, como uma espécie de teimosia em não aceitar esta viagem que ele fizera. Ele me disse que estava muito bem instalado. Que de vez enquando visitava amigos que ficaram no inferno.
–Sabe que não é como a gente imagina? Segredou, que lá o ar-condicionado não funcionava muito bem. Mas nada de enxofre, fogo, chororô, ou gritos de dor. De chato só a insistência com que tocavam um rock pesado.
-É que o senhor não conhece a tal de música eletrônica, pai.
-No que chamam de Paraíso, encontrei tio João, que só lamenta não poder mais acompanhar “Jerônimo, o herói do Sertão:” na radio Nacional, enquanto fazia seus cigarros de palha. Tia Nica quando chegou lembrou dos tempos da tecelagem. Ela que andava tão esquecida ultimamente, lembrou de tudo, inclusive do dia em que você perturbou tanto o bezerro que ele, mesmo sem chifres investiu contra você no pasto como um touro de arena. Ela chegou a recordar a cena de você lá em cima da goiabeira, o dia inteiro esperando o trem passar na linha…lembrou dos carrapatos que você trazia grudados no corpo todo quando voltava da mata…que coceira, hein?
Não sei por que, acabei trazendo para nossa conversa aquele dia em que eu era pequeno e tínhamos ido de ônibus para Americana, no interior de São Paulo (a terra natal dele) visitar nossos parentes. A gente estava num ônibus cujo motorista acho que tinha esquecido o pé no acelerador e num movimento brusco, fechou um carro na Estrada. O chofer do ônibus botou a cara fora da janela e gritou: - Bar- bei - ro!
Quando chegamos à estação rodoviária, assim que abriu a porta para a gente descer, o tal carro que tinha sido “fechado” estacionou com muito ruído e dele saltou um “armário” vermelho de raiva e perguntou aos berros:- Quem que é barbeiro? Quem que é barbeiro?
Claro que ele se dirigia ao motorista do ônibus no qual , provavelmente iria tascar uns sopapos. Acontece que essa era a profissão de meu pai. E que diante daquela insistente pergunta do “armário” já ia dizer que barbeiro era ele, no que minha mãe sacou , no ato o vacilo do velho e o puxou pela manga do paletó.- Não se mete nisso Fredo!
Creio que ela salvou sua vida nesse dia.
Outro episódio engraçado aconteceu comigo. Uma roubada que o senhor me envolveu. Lembra do teste que o senhor teve que fazer para tirar diploma de barbeiro. Aquela exigência do deptartamento do Trabalho para te dar o registro, mesmo depois de mais de quarto décadas de profissão? O senhor começou a cortar cabelo quando?
-Comecei aos nove anos , em cima de um banquinho para alcançar a juba do freguês.
-Pois é, pai, naquele dia em que o senhor me pediu para ser a cobaia do exame final do curso de barbeiro, quando sua turma aplicou todos o seu conhecimento na minha cabeça. O método que impunha lavar os cabelos com xampu, escorrer, cortar com vários instrumentos: tesouras de fio e serrilhadas, navalha. Depois veio o secador, o acerto do penteado, o cabelo levado de um lado para o outro e por fim o laquê. Eu acompanhando tudo de olho no espelho, aquele bolo de noiva na minha cabeça. Sai do curso parecendo uma boneca, e ainda por cima todo perfumado. Teve até aquele talco desgramado no final quando “fizeram o pé”. Eu me lembro que entrei no ônibus no horário que o operariado estava indo para casa, e eu naquela armadura ridícula…Sei que o senhor ficou triste quando cheguei em casa e desmanchei aquela obra de arte debaixo da torneira do tanque.
Ele riu a valer, enquanto a tarde derretia lá fora do bar.

Meu pai, acho que era o verdadeiro humorista da família. Sua filosofia era simples: Achava que nesta vida o homem tem que ter sorte. Se não tem está prejudicado. Não levava nada a sério, até com a morte ele tinha uma relação para lá de irônica.
Talvez por isso era considerado a alegria dos velórios. Adorava contar anedotas, (nenhuma de salão). Bastava ter um velório (antigamente os velórios levavam a noite toda) e lá estava ele a contar piadas numa rodinha de insones que gargalhavam enquanto o defunto, louco para participar daquela alegria, tinha que ficar alí imóvel dentro do caixão para cumprir seu papel. Mas o que ele gostava mesmo era de fazer a barba do morto. Em geral conversava com ele. Dava tapinhas na face cadavérica, enquanto esgrimia sua navalha e o pincel cheio de espuma. Dizia: -Como você vai embora assim, seu canalha!
Até viuva acabava saindo do seu vale lágrimas e principiava a rir timidamente. E assim, meu velho ajudava a driblar a dor.
Uma vez, no cemitério do Araçá, ele descobriu um crânio no meio de uma cova que provavelmente estava sendo escavada para retirar os ossos e botar na caixa da parede. Levantou o crânio e chamou a atenção de todos os que seguiam um enterro:
- Este é o nosso fim, não adianta querer fugir. Um dia a gente vai ficar assim, sem cabeça! Até as carpideiras rolavam de rir.
Disse a ele que tinha uma imagem que não me saia da cabeça: a de nós dois embaixo da Ponte-Grande pescando no rio Tietê.
-Pois é, o Tietê era líquido naquele tempo e dava peixe.
-Te falei que eu cheguei a ser atleta do clube Tietê? Eu fui remador, remava no rio que beirava o clube. Isso foi antes da guerra.
Voltei a falar de nossas pescarias do rio Bonito, na represa de Guarapiranga, no rio Atibaia… Lembramos de Carioba, do bambuzal que dava sombre a um longo caminho.
-Lá tinha cobra, bambu serve de ninho para elas.
-Você continua fazendo aqueles rabiscos? Vive disso? Não era para menos, desenhava em tudo que aparecesse pela frente. Era caderno da escola, atrás das folhinhas (calendários), no papel de embrulhar pão…
-É pai,bem que eu tentei ser químico, cheguei até o relatório final do curso. Fiz estágio, trabalhei na fábrica, peguei turno da noite, mas era alérgico e um dia encontrei um livro de sociologia e fiquei maluco em saber que se podia explicar a sociedade, o movimento das pessoas…Mas o desenho me encantou anos depois e não consegui mais me livrar dele…É pai, o filho é a diferença enquanto esperamos a continuidade.
-E eu que não consigo traçar nem um burro em pé?
- Mas o senhor tem sua arte. Até hoje admiro sua habilidade, mesmo quando suas mãos entortaram com aquela artrite. Mas uma coisa que ainda hoje não consigo entender, é como conseguia com aqueles dedos tortos manejar o taco de bilhar e se transformar no leão da sinuca, o famoso “Genaro” que desafiava os bambas do bairro e encaçapava todas naquelas mesas sem prumo?
-Bem , já vou indo. Espero te encontrar de novo, meu filho.
-Está bom, pai eu aguardo.
-Bonito!
E assim lá se foi ele, mais uma vez depois de pronunciar a sua palavra preferida. Ela pertencia a uma anedota em que um sujeito dizia que a mulher dele o admirava muito, pois quando entrava em casa , depois da farra, na ponta dos pés, a mulher dele dizia:-Bonito!

4 comentários:

Julia Liberati disse...

ôôôô, paizinho! que texto mais bonito, derrubei umas lágrimas sentada nesse cybercafé estranho, no meio de Berlin.
vou tentar falar com vc mais tarde, já deixei duas mensagens na secretária eletrônica.
muita saudade!
beijos
jujú

LIBERATI disse...

Meu amorzinho, deu zebra nas nossas comunicações, recebi suas msgs eletrônicas enquanto almoçava no "Serafa", seu irmão me ligou numa hora em que eu estava em casa. Encumpridamos papos sobre bossa nova e coisas afins.
Berlin deve ser uma festa.Já se chorou muito em Berlin. Não derrame lágrimas, o vovô não ia gostar, ele que era mezzo italiano e mezzo alemão, gostava de fazer rir, igual a mim que não me saí muito bem na arte de contar anedotas.
bjs muchos
Bundes Brasil!

ze disse...

'tá bonito mesmo. 'mulher e bolacha em toda parte se acha', a respeito dele querer comprar a briga do motorista. Liberius, você é engraçado sim. tanto escrevendo quanto desenhando. felicidades.

LIBERATI disse...

Valeu pela força, caríssimo Zé. Sabe que meu velho- uma espécie de"barbeiro que se vira", chegou a gravar um comercial de uma caderneta de poupança que foi ao ar na TV, no final dos anos 70? Chegou um produtor e viu nele o ator nato que ele era, ator de comédia. Acho que nem existia vídeo nessa época. Eu deveria ter pedido à empresa que filmou uma cópia da fita. Uma pena. Ele aparece como barbeiro, no salão onde trabalhou até o fim da vida. Bonito!
Grande abraço