23.1.15

Artigo de Jorge Sanglard / Cazuza 25 anos depois

O jornalista e pesquisador Jorge Sanglard enviou para o blog um belo artigo que homenageia o poeta Cazuza. As imagens utilizadas para ilustrar este texto (bastante modificadas agora) foram feitas por mim, e publicadas originalmente pela Editora Lumiar, no "songbook" Cazuza, de autoria do saudoso Almir Chediak. Atualmente esse livro pertence à empresa Irmãos Vitale Editores - Brasil.
Cazuza 25 anos depois Por Jorge Sanglard (*)// Agenor de Miranda Araújo Neto passou como um cometa chamado Cazuza e em seu rastro fica a certeza de que valeu a pena ser um porta-voz de um tempo difícil. Afiado e afinado com seu tempo, Cazuza, nascido em 4 de abril de 1958, morreu e foi enterrado, em 7 de julho de 1990, há quase 25 anos, no Rio de Janeiro, deixando flagrante a fragilidade do vigor físico mostrado no início da carreira musical, ao lado do Barão Vermelho, mas em nenhum momento de sua luta pela vida abandonou a contundência, a ironia e a mordacidade; batendo fundo e certeiro na hipocrisia. Com a cara e a coragem, Cazuza desafiou a tudo e a (quase) todos e graças a sua assumida postura de exagerado, despertou ora amor, ora ódio, mas nunca a indiferença. Mesmo nas horas mais difíceis e dramáticas, o cantor e compositor rejeitou a cômoda atitude da condescendência e, apesar de tudo, fez questão de alternar imperfeições com a maturidade poética e a densidade sonora, traçando um vigoroso mosaico de nossas misérias pessoais e sociais, sempre desafi(n)ando o coro dos contentes.
Cazuza foi à luta e com uma poética sem meias palavras e uma sonoridade simples, mas eficiente, deixou uma contribuição importante para a música brasileira contemporânea que, muitas vezes, teima em não deixar fluir a voz que vem de dentro e insiste em repetir as gastas fórmulas lá de fora. Enquanto teve forças, Cazuza viveu intensamente e se afirmou como um dos mais criativos músicos da nova geração da música brasileira. Isto não o isenta de equívocos, pelo contrário, apenas atesta a sua luta para não se render, nem ao apelo fácil da pasteurização musical, nem à diluição de sua proposta. Cazuza nunca se cansou de dizer que não queria compromisso com nada, a não ser com a vida. Hoje, quase 25 anos depois de se encantar, não vem mais ao caso se Cazuza cantava bem ou mal, importa só que sua obra está aí viva, contundente e coerente com a sua trajetória na música brasileira. Em seus discos, Cazuza foi deixando pistas preciosas de suas intenções e engendrou um verdadeiro quebra-cabeças onde peça por peça se encaixa e aponta o rumo preciso. Em seu último álbum “Burguesia” o cantor e compositor deixou uma dessas pistas na canção “Cartão Postal”, onde revela (in)confidências: “Pra que / Sofrer com despedida? / Se quem parte não leva, / nem o sol nem as trevas / E quem fica não se esquece / Tudo que sonhou, I now / Tudo é tão simples / Que cabe num cartão postal / E se a história é de amor / Não pode acabar mal / O adeus traz a esperança escondida / Pra que sofrer com despedida? / Se só vai quem chegou, e quem vem vai partir / Você sofre, se lamenta, depois vai dormir / Sabe; / Alguém quando parte / É porque outro alguém vai chegar / Num raio de lua, na esquina, no vento ou no mar / Pra que querer ensinar a vida? / Pra que sofrer com despedida”. Cazuza não vai mais se expor, sua música agora vai ocupar todo o espaço deixado pelo cantor e compositor, que soube dosar a corrosiva carga de seu canto, num momento em que ‘as ilusões estão todas perdidas’. Afinal, seus heróis morreram todos de overdose, seus inimigos estavam no poder e seu prazer virou risco de vida.
Mesmo não pretendendo empunhar bandeira alguma, a força de sua canção e o seu recado seguro e indignado acabaram por empurrar Cazuza para o centro de outras lutas. Sua canção “Brasil” se tornou um retrato em branco e preto da trágica realidade nacional de seu tempo, onde Cazuza cobrou alto seu inconformismo: “Brasil / mostra a tua cara / quero ver quem paga / pra gente ficar assim...”. Quem apontou o dedo tão firme para a ferida não está mais entre nós para ver quem é que vai pagar pelo que fizeram desde então com o Brasil. Com a morte de Cazuza, morreu também um pedaço da irreverência brasileira. Morreu um poeta da indignação. (*)Jorge Sanglard é jornalista, pesquisador e produtor cultural. Escreve em jornais de Portugal e do Brasil.

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