4.10.18

Dica do Gerdal: Palavras e músicas de Baden Powell

(Foto: João Poppe)
"No estrangeiro, não dá pra ganhar grana. As telefônicas capam tudo, e, realmente, acho que saudade não tem preço. E ouvir a pessoa é muito importante. Lembra quando a gente falou uma hora e meia de Paris para a sua casa? É verdade, neguinho. O telefone é um esporte muito mais caro que uísque. Mas só faz bem ao coração. Ouvir os amigos quando bate uma fossa ...
Em Paris, pintou um francês parado na nossa música, o Pierre Barouh. Bonitão e influente em certas áreas femininas, pôs-me em contato com madame Barclay, que disputava uma gravadora com seu marido, Eddie Barclay. Os dois me queriam, e fiquei na de leilão. O fato é que acabei indo aonde alguns acabam: o Olympia. Falavam-me da sua importância, mas a minha grande preocupação era matar a fome, que já era preta. E, com um fogareiro no quarto para ajeitar um rango, pintou uma feia. Na véspera da estreia, a água muito quente de dois ovos cozidos caiu em minhas mãos. E, com uma delas enfaixada, estreei. Oito cortinas, oito vezes bis. Bem, aí tudo fica mais fácil. Contratos pra lá, pra cá, contratos para tocar na boate Feijoada. Nela, fiquei dois anos! Era o meu ponto de encontro, de contatos e de contratos. Bilboquet, Salle Pleyel, eu sempre ataquei nessa diferente. Dava concertos e metia samba de montão. O pessoal até hoje curte essa. Então, meus três meses previstos renderam dois anos. Nada antes programado. As coisas vão acontecendo ... Hoje sou muito amigo não só dos empresários, como também do povo. Aprontei muitas por lá. Fiquei famoso ...   A Alemanha foi uma conquista posterior. Lá, caí logo na boca do leão. Berlim e Stuttgart são cidades difíceis. O público é quentíssimo, superinformado musicalmente. Quando eles não gostam de um espetáculo, não tem essa de vaia, não. Eles simplesmente saem da sala. No Philharmonic Hall, acho que é a maior casa de concertos do mundo, eu encarei o público, em 1971. O espetáculo, que teria duração de hora e meia, foi prorrogado - no peito - para três horas e meia. E aquilo me consagrou. Ainda em Berlim, participei do Festival de Jazz. No dia dos guitarristas, lá estavam Barney Kessel, Charlie Byrd, Joe Pass e outros, os maiores do mundo. Aí, foi um "acaba". Não deixei pra ninguém Eu estava louco ...Continuo com bom campo de trabalho, porque toco clássico e popular com relativa desenvoltura. E os homens gostam da nossa música. Só quem não gosta da nossa música são os brasileiros ...
A bossa  nova era algo sólido. Acrescentou à nossa música harmonias ricas. Mas veio essa mania de derrubar estruturas e aí fica perigoso. Não se pode demolir uma casa sem saber onde está a viga mestra. Ela acaba caindo na sua própria cabeça. Isso não invalida artistas isolados, como o Milton Nascimento, que faz o dele e muito bem. Falo num todo, num movimento que a tropicália destruiu  e até hoje não colocou nada no lugar ...
Pesquisa? Certa vez, chamei o Guerra-Peixe para fazer um arranjo para uma "Bourrée" de Bach, transportá-la para um quarteto de cordas. Transcreveu para violão uma parte de guitarra. Ao ler, a parte, Guerra afirmou: "Não conheço a obra, mas esse compasso está errado. Bach jamais escreveria assim esse tipo de acorde. E consertou. Quando fui verificar no original (a parte de violino), o Guerra estava certo. Não há dúvida que ele é um pesquisador de Bach....
Inspiração existe claro, mas eu morro de rir quando alguém explica como faz uma música. Pra mim, música não tem hora, lugar ou explicação. Defendo uma tese meio louca de que ninguém faz música. Elas estão aí no ar, e há quem tenha o dom de captá-las. Comigo a coisa chega pronta. Fico até assustado. Mas creio que a sensibilidade da gente é que rege tudo. Daí você estar numa fossa e compor algo alegre. Ás vezes, ocorre o contrário. Para onde estiver a direção da sensibilidade estará o resultado de uma canção. Uma coisa assim mediúnica ...
Quando me perguntam se eu  mudei de estilo, morro de rir. Tudo que crio é fundamentalmente brasileiro. E se a gente faz o que está no sangue, está fazendo certo. Sai tudo direito ...
Tenho remorso das músicas perdidas entre porres e mudanças. Durante um porre, fiz "Psicose", coisa muito linda. Toda tarde, vou pra varanda, armo a minha arapuca, mas o passarinho nunca mais voltou. Tenho 720 músicas compostas e, acredite, essa está faltando." .     

Pós-escrito: a) acima, transcrição de partes de entrevista concedida por Baden Powell a Ronaldo Bôscoli, letrista bossa-novista e repórter da revista "Manchete" - edição de 3 de março de 1979; b) nos "links" abaixo, a presença autoral de Baden, por ele mesmo (com exceção do último): "Igarapé"; "Violão Vadio" (letra de Paulo César Pinheiro); "Tempo Feliz" (letra de Vinicius de Moraes); "Samba Triste" (letra de Billy Blanco), com Lúcio Alves. A foto de Baden é de João Poppe, feita para a referida matéria.
https://www.youtube.com/watch?v=cDR09xHRofs ("Igarapé")

https://www.youtube.com/watch?v=IBxl0gSa5vU
("Violão Vadio")

 https://www.youtube.com/watch?v=3dFOhMaAwKs ("Tempo Feliz")

 https://www.youtube.com/watch?v=xtcgAKw-OAs ("Samba Triste")




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