19.8.08

Em busca do Outro


(Esta matéria de Jorge Sanglard (*) foi publicada no Caderno Pensar do jornal Estado de Minas - Trata do livro "Ver e Imaginar O Outro"(Editora Horizonte), organizado por Regina Dalcastagnè)
Em 10 ensaios reunidos por Regina Dalcastagnè, professora de literatura da Universidade de Brasília (UnB), a questão da alteridade, desigualdade e violência na literatura brasileira contemporânea é desnudada no livro Ver e imaginar o outro (Editora Horizonte). O conjunto das obras literárias analisadas por pesquisadores de diversas instituições no Brasil e no exterior tem como referência a recusa à injustiça e à intolerância e uma reação contra estas nefastas práticas. O diálogo, a coexistência, a possibilidade do encontro e o convívio com a diferença marcam os ensaios, tendo como pano de fundo a violência que permeia nossa sociedade.

O escritor Luiz Ruffato ressalta o empenho da organizadora do livro na criação, em 1999, da revista Estudos de Literatura Brasileira, editada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, “um espaço democrático destinado a discutir a recente produção literária nacional”. Os textos integrantes de Ver e imaginar o outro são fruto da revista e refletem, segundo Ruffato, sobre a complexa realidade brasileira, tendo a literatura como fonte de expressão e de compreensão, além de encarada em seus fundamentos estéticos, éticos e políticos. E Ruffato assegura que o papel desenvolvido pela revista, num meio absolutamente avesso ao debate e à controvérsia, representou uma opção para os que acreditam no papel do intelectual como um produtor da história, e não como um mero comentador dela.

Na apresentação, a autora lança mão de uma frase síntese do Manifesto da antropofagia periférica: “A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza”. E enfatiza: “O problema de idealizar a literatura é o que essa idealização acaba escondendo”. Segundo Regina Dalcastagnè, das teorias que afirmam a literatura como um espaço aberto à diversidade até aqueles que a prescrevem como remédio para as mais variadas mazelas sociais (da desinformação à ausência de cidadania), podemos acompanhar o processo de idealização de um meio expressivo que é tão contaminado ideologicamente quanto qualquer outro, pelo simples fato de ser construído, avaliado e legitimado em meio a disputas por reconhecimento de poder.

Direitos Civis
No Brasil, hoje, afirma Regina, os autores são, em sua quase totalidade, homens, brancos e de classe média. Eles reclamam das dificuldades enfrentadas para publicar, ser lidos e, obviamente, sobreviver. Mas adverte: “Reconhecer essas dificuldades no campo literário não pode equivaler a entendê-las como as únicas existentes, nem como as mais sérias”. Regina Dalcastagnè afirma ainda que os tempos mudaram, que algumas lutas por direitos civis desembocaram também na literatura, “fazendo com que mulheres, negros, homossexuais, índios começassem, timidamente, a escrever”.

No entanto, destaca que eles ainda não foram incorporados de fato. E promover o rompimento com a estrutura dominante de pensamento é muito mais difícil quando não se percebe, ou não se assume, que nosso olhar é construído, que nossa relação com o mundo é intermediada pela história, pela política, pelas estruturas sociais.

Negar isso, garante Regina Dalcastagnè, é insistir na perpetuação de uma forma de violência, que elimina da literatura tudo o que traz as marcas da diferença social e expulsa para os guetos tantas vozes criadoras. A autora destaca a importância da discussão sobre o modo como a narrativa atual engendra o olhar em seu interior, especialmente o olhar que incide sobre aqueles que a sociedade brasileira não quer ver: estranhamento, exotismo, crueldade, melancolia, cinismo, testemunho são termos que reaparecem aqui e ali, seja como centro da análise, seja como uma tentativa de discernir o que se passa do lado de dentro da obra, ou mesmo nas suas cercanias, quando se analisa a maneira como representantes de determinados grupos sociais são recebidos, ou não, no campo literário brasileiro.

Olhar e Violência
Um bloco de textos agrupados no livro tem como fonte o olhar. Um segundo bloco abrange artigos voltados para a questão da violência. O terceiro bloco trata do problema da exclusão. A temática da fronteira entre a loucura e a razão também marca presença no livro.

O problema de idealizar a literatura é o que essa idealização acaba escondendo
No texto “Uma sociedade do olhar: reflexões sobre a ficção brasileira”, de Lucia Helena, a sociedade do olhar é revirada de cabeça para baixo. Para a ensaísta, na sociedade do olhar, todos espiam, mesmo que não voluntariamente, o que não quer dizer que enxerguemos melhor. O ensaio “Cenas da crueldade: ficção e experiência urbana”, de Ângela Maria Dias, traça um painel da estreita relação da literatura brasileira contemporânea com a vida urbana e ressalta que essa perspectiva vem configurando uma recorrente perplexidade diante da experiência histórica, ficcionalizada como absurda e inverossímil.

No ensaio “Vozes nas sombras: representação e legitimidade na narrativa contemporânea”, a ensaísta e organizadora do livro, Regina Dalcastagnè, afirma que o silêncio dos marginalizados é coberto por vozes que se sobrepõem a ele, vozes que buscam falar em nome deles, mas também, por vezes, é quebrado pela produção literária de seus próprios integrantes. Enfim, o livro é um convite à reflexão sobre as relações entre a violência, a exclusão, a desigualdade e a cultura no Brasil de nossos dias.
*Jorge Sanglard é jornalista e pesquisador

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