24.10.17

Algumas Biografias de Stalin - Parte II



Stalin - Capítulo 2- Montefiore entra nos arquivos secretos

O Czar Vermelho
Pode-se dizer, sem nenhuma dúvida que Montefiore escreveu um livro de peso. Exatamente 1 quilo e 280 gramas de uma longa e detalhada narrativa de 860 páginas carregadas de juízos nada elogiosos ao camarada Stálin. Seu trabalho é menos uma biografia e mais uma crônica de corte. A forma de contar flerta com a ficção. Em certas ocasiões utiliza de recursos literários para reconstruir diálogos, ou narrar situações que encadeiam a evolução do personagem principal até chegar a se tornar o czar vermelho. Privilegiando ações, descoladas do contexto histórico social, o autor adota uma perspectiva rasa que não capta o significado da trajetória desse controverso dirigente. Tudo parece uma sucessão de perversidades, um guia de um museu de horrores.
Parece soar falsa também a boa intenção de Montefiore que diz pretender superar a grande parte das biografias de Stalin que, segundo ele, tendem a apresentá-lo como uma aberração. Isso não o impede de acolher insinuações tais como a de que Stalin foi um agente da Ohkrana (polícia secreta do czar)nos seus tempos de subterrâneo. Ou quando solta frases que não escapam à sede de mostrar Stalin como um anormal e os bolcheviques como um bando de cruéis beberrões sanguinários. Fica a impressão que se está diante de mais uma peça condenatória, uma espécie de chute em cachorro morto, que em nada contribui para uma consistente avaliação do personagem em questão. Mas, mesmo não se livrando desse cacoete, num “morde assopra”, na medida em que avança no texto, o autor parece compreender a complexidade do biografado e se se perdoar suas recorrentes frases de efeito (tais como “A base do poder de Stalin no Partido não era o medo :era o charme”)- o livro, faz um retrato aceitável, na medida em que deixa que a intimidade revelada do biografado faça o serviço de mostrar as inúmeras e contraditórias facetas desse tirano que não poupou nem seus camaradas, suas famílias, e chegou a sacrificar seus próprios parentes.

Um dos méritos do livro é revelar seu “modus operandi” brutal de dominar onde segundo o autor, refinou os, “métodos jesuíticos” que aprendeu em sua formação de seminarista. Mostra como aplicou o procedimento inquisitorial, onde se destacam a necessidade de confissão das vítimas, o arrependimento e a fogueira. Mas o que se evidencia da leitura dessa imensa crônica é o talento ficcional de Stalin, capacidade que usou em toda sua vida para fazer o roteiro no qual, ele adapta a realidade à sua visão. Outro aspecto que chama a atenção é a paranóia como sistema de governo e o estímulo das rivalidades que não eram poucas, entre a elite de seus comandados.

Apesar de querer mostrar que as obras do período stalinista, para o bem ou para o mal, não foram produto de um só homem, o que se destaca no livro é a onipresença de Stalin. Por trás de cada vírgula dos discursos, das estrofe de poemas, dos fotogramas de alguns filmes, de decretos de expurgo ou de reabilitação, lá estava a sua chancela.

Montefiore apresenta tudo como se fosse uma grande ópera de tons trágicos. Logo de cara, joga o leitor numa tensa cena decisiva - no fatítico 8 de novembro de 1932 quando relata o solo tresloucado da segunda mulher de Stalin. Uma perturbada Nádia se retira de um jantar festivo e se suicida com um tiro de uma Mauser em seu quarto, no Palácio Potechny. O autor, que afirma ser o suicídio uma morte bolchevique, localiza neste momento o ponto de mutação do personagem que abatido pelo que depois classificou de traição de sua mulher que por sua vez o acusava de infernizar a vida de todo mundo,irá mergulhar a URSS no terror.
Após essa grande entrada , o autor recua para num curto esboço biográfico contar como Ióssif Vissariónovitch Djugachvili, conhecido pelos íntimos como Soso , na clandestinidade como Koba(camarada fichário) e mais tarde por todos como Stálin vai se transformar no homem forte da URSS. Parte da sua ascenção é narrada em lances rápidos, onde derrota seus companheiros Zinoviev e Kamenev que junto com ele compunham o triunvirato que sucedeu à morte de Lenin (que havia recomendado o seu afastamento do cargo de secretário geral em testamento ditado no leito de morte e que foi espertamente escondido) e vai até 1929, data que marca a sua projeção como líder. Momento que nas palavras do autor, a história que ele quer realmente contar começa . Ressalta que nesse ponto ele não era ainda um ditador. Era o duro bolchevique já havia vencido de forma inexplicavelmente fácil a disputa com Trotski que foi obrigado a se exilar e neutralizado a oposição de Bukharin e Rikov que mais tarde seriam eliminados. É aclamado verdadeiro sucessor de Lenin. A partir dai, gradativamente construirá a arquitetura de sua tirania até sua polêmica morte em 1953.
Assim acompanhamos os vários momentos de um longo libreto mórbido: o massacre dos kulaks, a coletivização forçada, a grande fome, o terror dos anos 1936/37, os expurgos que darão vazão à paranóia como sistema de governo, a invenção das conspirações como método para eliminar os adversários e criar a aparência de um poder sem dó que pune exemplarmente, como no caso do massacre dos oficiais do Exército vermelho que debilitou o URSS nas vésperas da segunda grande Guerra. Neste episódio, Montefiore compra uma versão onde Stalin aparece débil e vacilante não questionando as versões em que se baseou.

Montefiore procura sempre descrever os cenários onde ocorrem as decisões em jantares pantagruélicos regados a muita vodka, sessões de cinema na madrugada em palácios do Kremlin ou nas dachas preferidas do dirigente. Outras vezes os surpreende em trens blindados e à medida que a história avança, vai apresentando um a um os coadjuvantes, os “potentados”, ou “magnatas”, como ele os classifica. Mostra o Partido como uma família incestuosa e o bolchevique como uma espécie de templário. Faz brevissimos perfis para orientar o leitor nos intrincados labirintos soviéticos. Fica-se assim conhecendo um pouco da vida de pessoas que viveram à sombra do grande chefe, sendo que alguns foram suas vítimas, gente como : Kirov, Molotov, Kalinin, Tukhatchviski, Kagánovitch, Sergo Ordjonikidze, Proskrióbichev, Vorochílov, Mikoian, Béria, Jdánov, Iejov… vão sendo “perfilados” na ordem em que entram em cena. Desta forma vai até grande finale onde o tirano mergulhado numa poça de urina agoniza enquanto uma luta silenciosa acontece nos bastidores e suspende sua última obra, a liquidação da velha guarda, iniciada no 19º Congresso em conjunto com as operações para destruir o que se chamou de “complô dos doutores” no qual foi preso entre outros notáveis, até o seu médico particular num esquema que envolvia um expurgo de judeus de todos os postos , inclusive de parentes, como Polina, esposa de Molotov que amargava uma prisão por suposto vínculo a uma conspiraração sionista- americana onde mostra que seu anti-semitismo era político.
(Continua amanhã)

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