16.9.07

Uma dose de Scott


Uma dose de Scott (Fitzgerald, é claro!)
Dia desses, minha filha me disse que estava lendo os “6
Contos da Era do Jazz” de F. Scott Ftitzgerald (Acho que ela gosta de livros que começam por números, pois não larga um que se chama “9 estórias” de J.D. Salinger) Falou com entusiasmo de um conto no qual um sujeito vai de camelo até a casa de uma moça e de um outro no qual um bebê já nasce velho e ranzinza. Confesso meu HD anda com problemas, não me lembrava de nenhuma dessas histórias apesar de ter tido um dia esse livro e, detalhe: fui eu quem deu essa obra para ela. Comentei, com ar professoral que Fitzgerald era um grande escritor e grande alcoólatra, que Hemingway tinha uma diferança com ele, talvez de grau alcoólico e que em “Paris é uma festa” tentou desclassificar seu parceiro de copo e falou mal de Zelda (mulher de Scott que ficou louca) e também era escritora, de sobra esculhambou Gertrude Stein porque era lésbica.
Mais tarde , no meu apartamento, perdido entre meus livros que por uma espécie de vontade própria parecem buscar uma ordem que desconheço, no silêncio infinito da madrugada enquanto o SBT reprisava mais um episódio de “Além da imaginação”, busquei os livros de Fitzgerald nas estantes, achei logo de cara os 24 contos (do qual só li “Bernice corta o cabelo” “ Um diamante do tamanho do Ritz” e “Amor à noite”) e um outro livro publicado pela Civilização Brasileira cujo título era “A Derrocada e outros contos e textos autobiográficos”, me perdi na sua leitura. Lembrei do Grande Gatsby, uma aula de romance, etc e tal. Estava na última história “Financiando Finnegan (que também está nos 24 contos selecionados por Ruy Castro) quando caiu do meio das suas páginas um velho papel onde estava datilografado um texto de minha lavra no qual descubro que um dia fui outra pessoa (que na época, imagino, vivia um certo desespero). Peço desculpas ao velho Scott e ao leitor pela ousadia, mas resolvi publicar essa escrito. Há nele um mistério e uma inocência que jamais terei e que quem sabe ajude alguém que esteja pensando na morte da bezerra. Acho que tinha intenções poéticas que ficaram no meio do caminho, talvez patéticas (pelo menos rima)
Existe um abril? (esse era o seu título)
Eu espero.
Acordarei amanhã?
Aguardo
Sem mim o relógio vai mudar seus ponteiros,
quartzo imutável que registra a mudança de um tempo eterno, silencioso.
O ar frio desta noite entra na sala. Eu calo um grito , sinto que uns grãos de areia me escapam pelos dedos, não posso retê-los, eu os perco entre os tacos da sala de jantar. Inútil, constato que tudo é vão quando tudo se esvai no instante do Segundo que passa no tic tac da relojoaria de Kafka.
Vão, vazio, brecha, ferida…flor que nasce, quase perfuma e logo fenesce…
Em mim um grito se transforma em trincar de dentes. Ninguém ouve no silêncio do apartamento. As crianças dormem, o relógio continua a mudar os ponteiros indicando um tempo que não muda. Só eu percorro as ruas de uma cidade que está em meus pesadelos e não me movo, acordo, a tv está com barras coloridas e um chiado baixo contínuo. Mudo não ouso acordar as crianças de seus sonhos de papel colorido… Mudo de canal. Um homem troca tiros com outros numa corrida de carros pelas ruas de Los Angeles…As linhas de meu destino me levam de volta ao lar, doce esperança de algodão, imagem de inocência, prisão e refúgio. Ninguém pode chorar por mim agora, só eu posso olhar para dentro desta flor ressecada, e as lágrimas são de sílica, choro o tempo que não vivi e tenho saudades. Invoco os antepassados, quero a proteção deles…Estou navegando à deriva dentro da sala como um astronauta me vejo numa galáxia de valium no lado escuro da lua. Do alto da minha nau solitária ouço o longínquo ruído dos motores da noite. Um sentimento que tenho guardado me pede saída, implora que aguarde, um lembrete no bolso do casaco me lembra que é preciso ter força, que é urgente renegar o que eu sinto para sobreviver. Agora sou força mansa, cólera silenciosa que se esvai na fumaça do cigarro, uma luzinha vermelha se deslocando até a luminária que mostra o papel branco onde o olho experimenta uma dor e a mão transforma o branco em figura, formas, signos que dirão algo num futuro, quem sabe?
Sou a mente que interroga o sentido, a contradição que ameaça explodir … Volto ao dia em que terminei o ginásio, e tive que trabalhar…o tremor diante da Burroughs onde fui fazer um teste de contabilidade e me dei mal. Mais tarde soube que um tal de William Burroughs tinha participado de um almoço nú e depachado sua mulher desta para melhor em Tânger ao imitar Guilherme Tell.
Vejo hoje os filhos, âncoras, pais, país e já não temo. Só me pergunto se isso é possível: viver essa estação provisória, ligo meus condutos a um tempo em que tudo pode acontecer, inclusive eu viver. Alguma coisa me escapa nisso tudo, sou eu que driblo essa angústia. Alguma coisa me prende, sou eu de novo a espreitar o movimento do ponteiro do relógio.
O dia vai nascer e tudo aconteceu como se fossem décadas, e eu espero ainda sem me mover…um cheiro de café vem da cozinha, até mais tarde metafísica!
(Esta crônica tinha por título original “Existiu um abril”)

8 comentários:

Anônimo disse...

Há uma edição grossa com mais de cem contos do Scott, que tive e dei: dei muito livro. Invocas os antepassados: lá na Roma antiga haviam às portas, ao átrio, a máscara da família; não era pessoal mais personaliza-se com o tempo. Era impessoal mas da família, representava no rosto, a face do clã.

Anônimo disse...

Liber, foi Zé que escreveu sem identidade, zé ninguém.

LIBERATI disse...

Caro Zé, que bom ter você de volta no nosso espaço-café com leite , pão com manteiga. Que pena que você passou para a frente o livro do Scott Fitzgerald, os contos dele são primorosos. Pensando bem, não foi uma coisa ruim, você deu o livro para alguém que vai aproveitar e ter o prazer de surfar nessas histórias muito bem escritas do genial autor do Grande Gatsby. Que interessante esse negócio de marcar a face do clã numa máscara familiar.
Grande abraço

sizenando disse...

será que consigo imitar o zé?

a escrita marca, a escrita registra. as referências mudam, do eu que escreve para o próprio, do eu q escreve para o outro, que lé. este outro eu retempera-se no que o escrito espelha.

o que pode ser saudoso, transfigura-se em outra atualidade.

caramba, quase lá.

olha, liberati, hoje nao tou muito bom. não sou cr´tico literario, sei que vc sabe que escreve bem, mas o fato é que essa lembrança de alguem que vc já foi funcionou neste hoje. ah, sei lá. continua. suas gavetas sempre têm coisas boas, que nem essa.
a gente nunca se perde, se prestar atenção. é que às vezes é meio sofrido. deixa pra lá.

Anônimo disse...

Liber, foi com este "Existiu um Abril" que me tornei sua comentarista de carteirinha... depois, é claro, de me deslumbrar com a caricatura de Dom Hélder Câmara com a pomba - sim, aquela que do meu ponto de vista era superior à dos pratos de Picasso e, ao lhe dizer isto, vc ficou encabulado. Do you remember???

notinha: olá ZÉ!

Anônimo disse...

'Marcar a face do clã numa máscara familiar' era costume romano antigo. O objeto era meio sacro, carregava de sacralidade ao átrio da casa: os japoneses ho-je se não me enganam guardam este costume do rosto do antepassado e a gente aqui também com as photos muitas vezes expostas. A impessoalidade contudo é a marca, que se esvai no tempo. O processo repete-se na idade clássica ocidental. Isto é de um livro escrito em 1932 de uma mulher chamada Jitta-Zadocks de sobrenome, sobre máscaras na Roma antiga: eram feitas de cera e argila. Este livro não passei. A representação de clãs é mítica pensando antropologicamente. Olá Tinê! Olá Size!

LIBERATI disse...

Pessoal, fiquei sabendo outras histórias de Scott Fitzgerald, o cara era o máximo, mas foi muito infeliz, qualquer hora boto essas outras histórias no ar. Preciso respirar.
Um grande abraço a todos

funk disse...

os contos dele são, de facto, primorosos. e esse, um dos melhores. que humor subtil!!!