31.7.08

Meus amigos são um barato


Ontem tive o prazer imenso de encontrar dois amigos do coração e hoje tive uma iluminação,embora não seja poste. Podem chamar epifania também ( que é aquilo que acontece na alma da gente quando a gente junta emoções e acontecimentos e enxerga alguma coisa além do cotidiano - algo no limite da realidade e do sonho talvez - uma nova visão da vida, quem sabe). Tudo começou quando meu amigão e companheiro de estrada Chico Caruso me ligou e disse que estavam lá na casa dele o mestre da caricatura Lan e o genial cartunista deste mundão que é o Nani. Disse mais, que se lembraram de mim e que eu deveria me apresentar. Diante de tal convocação e da saudade que tenho deles, me mandei rapidamente para lá. Chegando no fabuloso ateliê que serve de casa para o talento do Chico não encontrei Nani que, sempre atarefado foi para algum lugar criar textos, cartuns, histórias em quadrinhos, roteiros... Lan estava descansando da viagem e logo veio se juntar ao papo que eu levava com Chico diante de um saboroso prato de arroz com feijão caprichado e uma penosa devidamente temperada com uma salada de alface e tomate. (Diga-se de passagem que todos já haviam almoçado e só faltava eu que cheguei , para variar atrasado)
Falamos muito de pintura e pintores, função do riso, da caricatura, recordamos histórias antigas , Lan contou "causos" magníficos que aconteceram numa Buenos Aires de Jorge Luis Borges. De como ele veio parar aqui depois de viver num ambiente de jogadores fantásticos, tangos antológicos, revistas que não estão mais no mapa. E mais falamos de pinceladas, e sobre a importância da linha na vida do desenhista. Fomos avançando na tarde, até que no meio do papo surge o telefonema de Sabat diretamente da Argentina e então , meus amigos, aí ganhei o dia completamente. Meus heróis alí e eu curtindo com eles aquele momento lindo (como diria o rei Roberto Carlos) Mas, inevitavelmente surgiu o momento triste da despedida. Lan iria pra a Bandeirantes dar um depoimento (entrevista) e Chico precisava descansar de tanta emoção para mais tarde atacar a charge. Peguei uma carona com o Lan até Botafogo e depois de uma passada no sebo da Graça e do Chico Neiva (o Luzes da Cidade) para tomar um café descafeinado na doce companhia deles voltei para casa. Botei na vitrola "O Canto Livre de Nara" e fiquei lembrando de Lan, do desenho lindo que ele fez dela para um LP. Para completar minha alegria, hoje de manhã meu filho me enviou uma fotos que ele fez no Tahiti onde ficou trabalhando por um mês e logo depois me ligou da França. Falamos de tudo e entre nossos temas - conversamos sobre a Bossa-Nova. Ele está tomando contato com a música brasileira anterior à onda da Bossa e também com toda a produção bossanovista. Ele me falou com muito entusiasmo sobre um LP da Nara chamado " Os Meus amigos são um barato".Fui lá ver e ouvir e li um texto dela na contracapa onde falava de Gilberto Gil (nosso recentíssimo ex-ministro da Cultura). Ela dizia: "Só mesmo Gil seria capaz de me fazer dizer "Yeahh". Grande sacada dela, o Gil tem esse poder que é algo acima do poder do ministério e que ele sempre vai exercer. Fazer Nara cantar "Yeahh" é uma coisa quase mágica, inusitada. "Yeahh" não faz parte do vocabulário da MPB, é quase uma heresia. Foi nesse espírito que quase chega ao Nirvana que procurei a caricatura do Lan que ilustra esta "sacada". Ao mesmo tempo saquei que está na hora de fazer um documentário sobre esta figura genial que ele é. Juntar seu depoimento com a música, com o tango, com a milonga, o futebol, o Rio, com as mulatas, caricaturas que fez às pencas, misturar com flashes de Samuel Wainer, da UH, suas charges antológicas que espalhou pelos jornais do país e vai por aí, seus papos com seu amigo Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)... Recordei que durante o papo da tarde, Chico e eu rememoramos o espanto que nos acometeu ao vermos a Mostra retrospectiva da obra de Lan no Museu Nacional de Belas Artes e que nos deixou maravilhados com trabalhos dele que não conhecíamos. Lan é um universo. Bem, já que estamos reivindicando, acho que está na hora de lembrar de Nara, nestas comemorações dos 50 anos de Bossa Nova. Ela é, como seus amigos, um grande barato! Está na hora deles acordarem. Oh Yeahh!

Cartum: Invenção

30.7.08

Homengem: Caricatura de Amy Winehouse


Me rendo ao talento de Amy Winehouse. No começo pensei que fosse só uma barraqueira, só via notícias dela sempre envolvida em agressões, internações, oscambáus (o marido dela inclusive está vendo o sol nascer quadrado). Pensei que fosse uma subcelebridade querendo chamar atenção no mundinho pop. Isso prova que eu realmente vivo no mundo da Lua. Foi aí que minha mulher disse que ela era do baralho, cantava como uma daquelas divas negras americanas e que todo mundo da velha guarda do jazz ao mais vanguardista estava de queixo caído. Entonces, por coincidência, meu amigo Ernesto ( que não mora no Brás) me mandou duas indicações de vídeos dela que estão no Youtube, e lá fui eu ouvir a moça, e me segura que vou ter um troço! Tem uma música que se chama Love is a Losing Game que é linda, o resto também é muito bonito. Fiquei babando. Compramos o CD "Back to Black" no dia seguinte, numa lojinha da Marquês de Abrantes (claro que primeiro procuramos o CD no templo da música do Rio de Janeiro - a Modern Sound e soubemos que lá estava esgotado). Fiquei tão maluco por ela que resolvi fazer esta caricatura. Vida longa a Amy! Mesmo que ela insista em não tratar muito bem sua saúde.

Cartum: "Humor e Poder"


E dizem por aí que o Poder ri daqueles que não podem, ou daquilo que os fazem chorar.

27.7.08

Tiago Petrik nas livrarias


Acaba de ser lançado o livro do companheiro de estrada Tiago Petrik 1932 Uma Aventura Olímpica na Terra do Cinema pela PTK -Livros. A gente não noticiou o lançamento por vacilo de e-mail.

Meu livro: "Era uma vez um Brasil"


Este é meu primeiro e único livro. Na capa, tive o auxilio luxuoso de um pandeiro tocado pelo designer Toninho de Paula. O livro foi publicado pela Revan e está esgotado, pelo menos é o que informa o site da Editora. Já vi ele em sites de sebos na internet. Caberia uma continuação já que ele é uma "história em quadradinhos" do Brasil que vai de Cabral até a entrada de FHC em cena. Teria que fazer todo o período dele e depois o período do Lula que está em andamento. Quer dizer, teria que fazer um esforço monumental. Como ele é um livro anti-didático, fica difícil pegar uma grande tiragem, a não ser que o governo vire anarquista e compre toda a edição. Por isso, caros amigos, terão que esperar a próxima encarnação para ter uma continuação. E dizer que tudo começou com uma carta de alguns professores que pediram para que eu botasse em livro as tiras que publicava no JB da Avenida Brasil 500, onde contava de maneira irreverente e super sintética, a história desse país fabuloso chamado Brasil. Os referidos professores diziam que usavam minhas tirinhas para dar aulas.
Obs: Enquanto meu site não sai ( e não sairá tão cedo) vou botar no ar algumas capas de livros que fiz - uma espécie de portofólio meu, depois botarei as capas de CD. Um dia esse site sai da prancheta e aí vai tudo para lá, e o blogue fica só para levar um lero. Bom final de semana para todos!

Ilustração: "Que vento!!!"

26.7.08

Depoimentos sobre Macunaíma - Final -


(Aqui termina,a matéria espetacular de Jorge Sanglard sobre Macunaíma. Nesta parte final estão depoimentos de grandes figuras do mundo da arte da palavra)
Alexei Bueno
“Sempre afirmei ser a língua portuguesa a única língua moderna a ter criado três epopéias: ‘Os Lusíadas’, ‘Os sertões’ e ‘Grande sertão: veredas’. Uma em verso, no século XVI, e duas em prosa, no século XX. É certo que só Camões a escreveu dentro dos cânones estritos do gênero, mas o titanismo, o caráter bélico e o pathos épico que dominam a narrativa histórico-militar de Euclides da Cunha e o romance de Guimarães Rosa fazem com que ambos os livros, emocionalmente, existam como epopéias, o que importa muito mais do que a discussão sobre gêneros literários. O que é inegável é que essas duas obras são os nossos dois grandes livros nacionais, respectivamente a nossa ‘Ilíada’ e a nossa ‘Odisséia’, assim como ‘Os Lusíadas’ são a ‘Eneida’ de Portugal. Pois se esse livro cruento, ‘Os sertões’, narrando a queda da ‘Tróia de taipa dos jagunços’, faz bem as vezes da primeira, ‘Grande sertão: veredas’, essa demanda sublime pelo amor, pelo conhecimento e pela vingança é sem dúvida a possibilidade brasileira da segunda. Como Ulisses no seu atribulado retorno, o jagunço Riobaldo navega pelos infinitos e ínvios caminhos do sertão, plenos de tentações físicas e sobrenaturais, na busca do restabelecimento da ordem, do apaziguamento final, só conseguidos após a destruição da potência maligna representada por Hermógenes, tal como o grego só os conseguiu após o massacre dos pretendentes e seus próximos.
‘Os sertões’, como sabemos todos, veio à luz em 1902, e ‘Grande sertão: veredas’ em 1956. É quase exatamente entre esses dois livros que aparece ‘Macunaíma’, em 1928, que podemos chamar de nossa antiepopéia. O fabuloso conhecimento folclórico e lingüístico de Mário de Andrade chegou à sua síntese maior nesse livro mural que é a sua ‘rapsódia’. Afastado voluntariamente do pathos titânico dos dois livros que o enquadram historicamente, seu ‘herói sem nenhum caráter’ está provavelmente mais perto da verdade do que as alturas sublimes de Euclides e Rosa, o que não sei se é exatamente lisonjeiro para o Brasil. Entre o português muito nutrido pelos clássicos, e com uma visível influência de Oliveira Martins, ainda que de uma força sui generis, de ‘Os sertões’, e o expressionismo genial de Guimarães Rosa, cuja fonte mais importante está no Aquilino Ribeiro de ‘O Malhadinhas’, situa-se, portanto, a tentativa de ‘língua nacional’ de Mário de Andrade. Se em sua ficção, cuja culminância é ‘Macunaíma’, e em sua poesia – e quem escreveu ‘Meditação sobre o Tietê’ é uma grandíssimo poeta – essa ‘língua’ funciona perfeitamente, o mesmo não se dá, é preciso reconhecer, em boa parte da sua prosa não ficcional. Há um certo plebeísmo incontornável, um plebeísmo artificial, na topologia pronominal e em muito da sintaxe tão típicas do Mário de Andrade não ficcionista. Essa sua faceta fracassou obviamente, mas é uma faceta do doutrinador, do teórico, não do grande artista que sempre foi. O primeiro parágrafo de ‘Macunaíma’ permanece, só como exemplo, como uma dessas coisas que parecem ter existido desde sempre, no mundo platônico das idéias puras, tal qual o primeiro parágrafo de ‘Iracema’ ou a ‘Canção do exílio’ de Gonçalves Dias. A ‘língua nacional’, tão teorizada por Mário e antes e depois dele, foi algo que se desvaneceu perante a língua universal, e mais brasileira do que todas, do insuperável Guimarães Rosa. ‘Macunaíma’ segue, indubitavelmente, em sua originalidade e riqueza impressionantes, como um dos ‘livros da nacionalidade’, junto com ‘Os sertões’, o ‘Romanceiro da Inconfidência’, de Cecília Meireles, e o ‘Grande sertão: veredas’.”


Régis Bonvicino

“Mário de Andrade foi um excelente poeta em parte de seu livro ‘Paulicéia Desvairada’ (1921) e de ‘Losango Cáqui’ (1924). Depois, com passar do tempo, tornou-se um poeta de nível médio. Seu livro póstumo ‘Lira Paulistana’ (começo dos anos 1950) retorna ao bom nível do início. Mário de Andrade criou o que hoje se chama cultura nacional brasileira – estratégica para certa época e inútil hoje. Foi apropriado por esquerdistas-nacionalistas nos anos 1940 e significou ‘fechamento’ nacional para o Brasil. Fez de tudo muito, desde escrever cartas a pesquisas antropológicas e musicais. ‘Macunaíma’? Vale mais como metáfora, como aquilo que os outros imaginam, do que como romance em si. Há inúmeros romances ou prosas melhores do que ‘Macunaíma’, tanto no primeiro quanto no segundo modernismo brasileiro. Cito um: ‘Primeiras Estórias’, de Guimarães Rosa. ‘Macunaíma’ é um livro – ao ouvido de hoje – rebuscado. Vejo-o como um sonífero. Andrade é como o próprio modernismo brasileiro: arcaico. É uma instituição. Precisa de um releitura que o retire do ranço em que o meteram”.


Chico Lopes
“Tenho a impressão de que ‘Macunaíma’, que li nos meus anos de juventude repletos de descobertas quanto à literatura brasileira e reli uns 20 anos depois, mais sereno e cético, sempre foi para mim uma espécie de fantasma multicolorido a pairar na consciência brasileira. Preguiça, sensualidade desabusada, troca de raça e cor, venalidade feliz, abjeção carnavalesca, a fuga por um mosaico alucinado de Brasis. Não se pode pensar o Brasil real sem o ‘o grande Mal’ divertido de Mário de Andrade. Esse herói, tão assumidamente alheio ao heroísmo clássico, é visto sempre como pouco heróico e, no entanto, não me parece apenas assim. Diria que o sinto também como um herói trágico, dionisíaco, e lutando com um dilema que assola os brasileiros desde sempre e não dá sinal de solução: o da identidade, simbolizada pelo amuleto muiraquitã.
A decantada ‘falta de caráter’, em geral vista como um sinal de abertura e legitimação para a corrupção e a farra, parece carregar tintas mais sombrias, nos últimos tempos. Como o país vem progressivamente se tornando gravemente desconfiado de seu mito nacional de cordialidade, é possível que Macunaíma já tenha assumido um outro perfil e seja menos alegre que o grande Pândego que habitaria sob nossos paletós e gravatas. Mas esse lado sombrio nunca esteve descolado de sua totalidade. Macunaíma é um símbolo de muitos usos e infindáveis sentidos. É o símbolo maior de um país com uma estranha propensão a uma perversa alegria desenfreada e a se perder de si mesmo, fazendo trágicos mergulhos sem volta em rios repletos de miragens”.


Magaly Trindade Gonçalves e Zina C. Bellodi

“Num certo sentido ‘Macunaíma’ cumpre, de forma próxima ao picaresco, a tarefa de retratar o ‘herói’ nacional em sua ‘mock-epic’, isto é, numa obra onde o que constituiria os feitos grandiosos de uma figura mítica da nacionalidade, transforma-se, pelo humor, no que seria a imitação cômica do grandioso. Assim, acompanhamos a trajetória do herói desde o norte, vindo para São Paulo, percorrendo o Brasil, para voltar ao ponto de origem, onde, para não fugir à tradição folclórica, sofre sua definitiva transformação em constelação. Nas andanças pelo Brasil, e principalmente em São Paulo, experimenta as mais diversas aventuras, no meio das quais não deixa de figurar um tom às vezes irônico. O grande feito do herói é a luta que permeia suas aventuras com figuras como Venceslau Pietro Pietra. O próprio nome indica que a São Paulo pintada por Mário de Andrade, um dos destinos do herói, é uma cidade marcada pela imigração italiana. Ao longo da história diversas metamorfoses (momentâneas ou permanentes) aparecem como ponto fulcral de uma ação. O que marca este ‘mock-epic’ é particularmente a mistura de tempos diversos. De lugares primitivos onde se pesca como no início da civilização, parte-se para uma São Paulo e para um Sul em geral onde já existe aviação. A outra ironia que permeia a obra é a maneira como Macunaíma, ‘herói sem caráter’ (até por carecer de uma personalidade bem definida) embora originário de um Brasil primitivo, convive perfeitamente bem com as condições de vida de uma São Paulo já moderna. Poder-se-ia dizer que a obra procura, por meios diversos, focalizar a marca essencial de um país jovem como o nosso, isto é, a presença intensiva de outras etnias, todas elas tentando convergir para um ponto médio de cultura e civilização. Esta mistura reflete-se ainda no uso de diferentes linguagens, estilos diametralmente opostos, ao longo da história. De qualquer forma ‘Macunaíma’ é o épico que o Modernismo quis e pôde criar, isto é, a obra que busca a marca da nacionalidade (como toda epopéia clássica) sem deixar de destruir, pela ironia, sua própria estrutura grandiosa”.


Ronaldo Cagiano
“Ainda que críticos, ensaístas e estudiosos tenham se debruçado sobre a bibliografia e a personalidade de Mário de Andrade, não se esgotaram os olhares e as inúmeras possibilidades de compreensão de sua obra e de sua importância, como um antecipador e um divisor de águas na literatura brasileira. A partir da eclosão da Semana de 22, como um de seus principais signatários, Mário de Andrade chamou a atenção para a necessidade de uma arte que representasse e pensasse o caráter nacional, tendo como marco dessa consciência estética o romance ‘Macunaíma’. Não só como ficcionista e poeta, mas também como pesquisador e estudioso de nossa realidade multicultural, Mário mergulhou nos meandros cultura popular e erudita, e como um verdadeiro escafandristra, realizou um trabalho monumental de resgate, registro e memória, que são fonte e referencial permanente para estudiosos da língua e da literatura nacionais. Outra grande contribuição de Mário de Andrade foi a sua epistolografia. Nas cartas que trocou com amigos, escritores e intelectuais, percebem-se não apenas o seu pensamento e sua visão crítica sobre a arte e o País, mas suas agudíssimas discussões estéticas, que funcionam como verdadeiros farol e lição, principalmente para escritores de ontem e de hoje”.


Ozias Filho

“Este ano comemoram-se 80 aniversários do lançamento de uma obra fulcral da literatura e cultura brasileiras. Lançada em 1928, ‘Macunaíma – o herói sem nenhum caráter’, de Mário de Andrade, procurou na voz do próprio autor a definição de uma identidade nacional brasileira, longe do jugo e modelos coloniais ou aculturados. É certo também que a própria face da literatura brasileira nunca mais foi a mesma partir da experiência estética/lingüística vivenciada nesta obra que até aos dias de hoje inspira teses, dissertações, entre outras e variadas manifestações artísticas e culturais. Não sei, ao certo, se os objetivos do escritor na sua busca de uma identidade nacional foram plenamente alcançados, pois nesta aldeia global nunca deixamos de ser colonizados e aculturados, mas é inegável a representatividade do herói Macunaíma na ferida aberta, na alma brasileira. Contudo, para o leitor comum, onde me incluo, o que fica mesmo latente no livro de Mário de Andrade é esta viagem aos confins de um mundo do imaginário que está tão próximo de nós brasileiros; algo que nos remete para um estágio arquetípico; algo que já estava antes mesmo de sermos. Ao reler ‘Macunaíma’, aos 45 anos de idade, em Portugal, lembrei-me quase que instantaneamente das estórias que a minha avó cabocla (mestiça de branco com índio) contava-nos quando éramos crianças pequenas lá por terras do Rio de Janeiro: lá estavam a mula-sem-cabeça, o saci-pererê, a caapora, o curupira; personagens indígenas místicas às turras com lobisomens, sereias e outras assombrações do domínio público ocidental. Nós, irmãos, primos ou algum amiguinho que estivesse lá por casa a dormir, à meia-noite, por debaixo dos lençóis, cheiinhos de medo, contidos, mas com ou ouvidos atentos para mais uma comeizada de relatos sobrenaturais. Assim como o herói sem nenhum caráter Macunaíma, permiti-me viajar à terra mística da minha infância, à terra de magia e de liberdade; terra esta que também é preenchida pelas muitas aventuras do Sítio do Picapau Amarelo do meu preferido Monteiro Lobato”.


Lyslei Nascimento
“Macunaíma, nos seus 80 anos, tem muito a nos ensinar. A importância de Mário de Andrade e desse romance na renovação da literatura brasileira no século XX são inegáveis. Súmula do projeto estético de Mário, o romance funda, em suas poucas páginas, um novo olhar sobre a cultura brasileira. Ao mesmo tempo em que rechaça o academicismo formal e temático das letras e da arte em nosso país, através da Antropofagia, redefine nossa condição diante do ‘outro’ europeu. Ao abrir-se para o canibalismo cultural, deixa permear-se pelas vanguardas e pelo espírito cosmopolita do século que inicia. Com ‘Macunaíma’, o herói sem nenhum caráter, ventilamos o que foi definido como a ‘dialética da malandragem’ e, tal Brasil, tal romance, redescobrimos o que Eneida Maria de Souza chamou de ‘a pedra mágica do discurso’, ou seja, a possibilidade de, pela linguagem, construirmos um perfil nacional sem as empedernidas formas de nacionalismos que, vez por outra, insistem a tomar forma por aqui. Afastando-se das construções idealizadoras da nação, Mário propõe a ironia, ou seja, a desconstrução pelo riso e pelo deboche, que nem sempre, diga-se de passagem, é para fazer rir. Tal como Machado de Assis, Mário desfia a cultura entre a galhofa e a melancolia. Carece, portanto, de se estar atento à ironia em Mário. Um olhar sobre o seu romance, hoje, num mundo que se diz globalizado, pasteurizado por discursos do tipo ‘control alt c – control alt v’, deve, como na arte de ‘Macunaíma de Andrade’, de Arlindo Daibert, reinscrever, insubmisso, o processo antropofágico da cultura brasileira em nosso contexto artístico e literário”.


Marília Librandi Rocha
“Mítico, Macunaíma condensa imagens do inconsciente de uma brasilidade sempre por vir, em seu devir metamórfico – de piá a príncipe a constelação da Ursa Maior. Quando tentamos capturá-lo, Macunaíma já virou outra coisa, escapuliu, travesso. Lê-lo é sempre uma alegria. A primeira vez que ‘vi’ Macunaíma foi no teatro, na antológica encenação de Antunes Filho. Aquilo era um ritual, um acontecimento contagiante. Hoje, ao reler o livro, vejo o Macunaíma com a cara do Grande Otelo. O Imperador do Mato-Virgem. Quem seria a Macunaíma mulher? Iracema, provavelmente, a Virgem-dos-lábios-de-mel, se tivesse sobrevivido em versão Modernista. Um matrimônio a ser celebrado. Não seríamos mais como Moacir, ‘filhos da dor’ mas de um alegre amor em imaginária utopia”.


Eneida Maria de Souza
“Mário de Andrade é um dos escritores mais importantes da literatura brasileira do século XX. Mesmo tendo morrido jovem, aos 51 anos (Mário nasceu em 1893 e morreu em 1945), deixou uma obra essencial, de grande repercussão no Brasil, e uma correspondência vastíssima com os amigos, principalmente com escritores (dentre eles um grande número de escritores mineiros, como Drummond, Pedro Nava, Henriqueta Lisboa, Hélio Pellegrino e Fernando Sabino), em que se compõe toda uma poética modernista. A publicação das cartas que recebeu, que agora começa a ser divulgada, vai permitir que tenhamos acesso a um painel quase completo do princípio do século até os anos 50.
Mário foi grande poeta e romancista, e seu livro mais conhecido, ‘Macunaíma’, é a obra-prima do Modernismo brasileiro. Além de ‘Macunaíma’, publicou o romance ‘Amar, verbo intransitivo’, vários livros de poemas, entre eles ‘Paulicéia desvairada’, ‘Losango cáqui’ e ‘Remate de males’, contos, crônicas e relatos de viagem, como ‘O turista aprendiz’. Mário foi também um pesquisador importante das artes plásticas, da música, do folclore e do patrimônio e é autor de livros de ensaio como ‘Aspectos das artes plásticas no Brasil’, ‘Música, doce música’ e ‘Ensaio sobre a música no Brasil’. Alguns de seus originais ainda estão sendo publicados, e as pesquisas que deixou inacabadas vêm sendo concluídas por outros pesquisadores. Duas de suas obras foram adaptadas para o cinema: ‘Macunaíma’, de Joaquim Pedro de Andrade, filme rodado em plena ditadura militar, que levou a paródia ao extremo e rompeu com a estética do cinema novo, e ‘Amar, verbo intransitivo’, que recebeu o título de ‘Lição de amor’, dirigido por Eduardo Escorel.
Arlindo Daibert, artista plástico mineiro (1952-1993) realizou, em 1982, a leitura de ‘Macunaíma’ através de desenhos e gravuras. Ao condensar no título do trabalho, ‘Macunaíma de Andrade’, o nome da personagem com o do autor, assume a invenção artística sob o signo da autobiografia, ao reunir obra e vida a partir da reconstrução de retratos que reportam a cenas literárias, artísticas e políticas do período. As apropriações, as associações livres e os deliciosos roubos cometidos por Andrade na produção literária de ‘Macunaíma: o herói sem nenhum caráter’ demonstram a capacidade de entender a estética da paródia como ponto fulcral da arte modernista, procedimento encontrado nas colagens e reproduções de figuras da época. No texto ‘Diário de Bordo’, registro da preparação e da feitura de seus desenhos, Arlindo Daibert confessa as licenças artísticas cometidas na reconstrução das personagens, ao transformar a Uiara – e Ci – na imagem da bela e talentosa Tarsila do Amaral; a figura de Getúlio Vargas para protagonizar o gigante Piaimã ou elegendo o amigo e pintor Siron Franco como representação de Macunaíma, recriado na cena referente ao jogo das adivinhas. A mais evidente inserção autobiográfica do artista se revela na colagem referente à cena do capítulo ‘Macumba’, por contar com o respaldo de Mário: na festa da tia Ciata, o escritor introduz e ‘cola’ os amigos, transformando-os em personagens da rapsódia, procedimento capaz de romper com o limite rígido entre ficção e realidade. A explicação de Arlindo sobre a cena justifica sua intenção autobiográfica na leitura de ‘Macunaíma’: No final do capítulo, Mário mistura aos personagens da ficção alguns ‘macumbeiros’ reais como Bandeira, Antônio Bento, Cendrars, etc. Trata-se de uma lembrança de caráter afetivo, ou talvez por identificação ideológica, como no caso de Raul Bopp, também envolvido no estudo da cultura popular (...). Incluo entre os meus ‘macumbeiros’ alguns dos de Mário e outros como Drummond, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Virginia Woolf, etc.(…). O quadro ainda não está completo e para confundir um pouco os exegetas incorporei ao trabalho algumas… afinidades eletivas (ou seria liaisons dangereuses?) que, para terminar, ‘fizeram a festa juntos’1.
Em 1982, ‘Macunaíma de Andrade’ chega até a mim através de um recorte da revista Veja, enviado por um dos muitos amigos que me mandavam, do Brasil, notícias e bibliografia sobre Mário de Andrade. Nessa época estava terminando o doutorado em Paris, cujo tema era a análise do discurso e da linguagem em ‘Macunaíma, o herói sem nenhum caráter’2. A impressão de ver plasticamente traduzido o texto literário com o qual estava, há mais de três anos, em diária companhia, foi a mais impactante possível, embora não pudesse ainda avaliar a obra, por desconhecê-la na íntegra.
O contato mais próximo com a série de desenhos ocorreu em 1993, por ocasião da montagem da exposição em homenagem ao centenário de Mário de Andrade, voltada para a relação entre o escritor e os intelectuais e artistas de Minas. ‘Mário de Andrade – Carta aos mineiros’ contou com a presença de Arlindo, que teve parte de sua obra exposta, juntamente com as ilustrações de Nava sobre ‘Macunaíma’ e de documentos relativos ao convívio epistolar e literário de Mário. Nessa ocasião, já havia optado por uma abordagem mais contextual e biográfica de sua obra, através do estudo de sua correspondência, de ensaios, diários de viagem e entrevistas do autor. De posse de nova postura metodológica e teórica, foi possível perceber que ‘Macunaíma de Andrade’ realizava, dez anos antes, uma leitura em que o texto ficcional atua como pretexto para a invenção teórica, cultural e artística, além de tornar mais tênue a distância entre realidade e ficção”.
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(Obras citadas na matéria que está disposta neste blogue em partes pois é muito grande- mas vale a pena, um útil material para os pesquisadores e admiradores da obra de Mário de Andrade. Arlequinal!!!!
1 DAIBERT, Arlindo. Cadernos de escritos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995. p.25-26. (Organização de Júlio Castañon Guimarães.)
2 SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. 2.ed. revista e ampliada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.)
(A ilustração desta parte da matéria é um desenho feito por mim para o livro "Astronomia do Macunaíma" de Ronaldo Rogério de Freitas Mourão)

Ilustração: "Menino do Iraque joga futebol com bola invisível"

Depoimentos sobre Macunaíma - 2 -


(Continuação da matéria sobre Macunaíma, belo trabalho de apuração de Jorge Sanglard)

Cristovão Tezza
“Mário de Andrade é desses paradoxos que enriqueceram e deram consistência à literatura brasileira do século XX. Colocou a arte literária a serviço de uma teoria, e as duas coisas resultaram boas, o que nem sempre acontece com a vanguardas, cindidas entre uma coisa e outra; ‘Macunaíma’ é um achado de linguagem, imaginação literária e realização de uma tese, que continua nos dando pano pra manga. Em alguns aspectos, Mário de Andrade antecipa Guimarães Rosa; em outros, procurou pelo faro discutir a questão da língua brasileira, sem entretanto dispor de uma lingüística (que, como ciência, chegaria aqui com muito atraso) – mas continua sendo uma boa pauta para o Brasil do século 21. Para ele, a assombração da identidade brasileira sempre teve a aura do nacionalismo crítico, e não do patriótico. O melhor elogio de todos: sua obra continua viva a provocar respostas”.

Antonio Torres
“Antes de tornar-se um ícone do modernismo neste lado do paraíso terrestre, habitado por um povo expulso do Gênesis, na visão dos escritores-viajantes europeus do século XVI, Macunaíma já reinava nos confins das selvas amazônicas, como um espírito grande e bom, a divindade que criou a terra e as plantas. Esse mito de várias nações indígenas que habitam a oeste da serra Roraima e o alto Rio Branco, no extremo-norte do Brasil, se corporificaria como um típico personagem brasileiro do século XX: o herói sem nenhum caráter. Empenhado em captar em profundidade o temperamento brasileiro, Mário de Andrade fez do seu ‘Macunaíma’ um tipo popular, em cujos defeitos e qualidades (menos nestas do que naqueles), toda uma sociedade, basicamente formada por náufragos, aventureiros e piratas oriundos das ocidentais praias lusitanas, pode se reconhecer. Ainda que, macunaimicamente, venha a negar qualquer verossimilhança”.

Glauco Mattoso
“Em dois dos sonetos que fiz para o Mário, eu diminuía o mérito de ‘Macunaíma’, em favor do Mário contista, mas era porque nos contos ele foi mais realista, e não aprecio escapatórias surreais nesse gênero. Ocorre que, na literatura universal, são os grandes romances que, em prosa, arquetipificam os mitos, e ‘Macunaíma’ é talvez o maior arquétipo do malandro brasileiro, preguiçoso porém esperto, elevado à categoria de mito, que nas décadas seguintes seria consagrado, menos na prosa que na poesia, pelo cancioneiro popular, a exemplo do ‘mulato inzoneiro’ de Ari Barroso e do ‘rapaz folgado’ de Noel Rosa. Nesse sentido, o romance torna-se um feito invejável, e não por acaso quem mais o invejou foi Oswald, já que a mitologia macunaímica sintetizava tudo que o próprio Oswald pretendia com sua teoria da antropofagia. Se a rivalidade entre Mário e Oswald pode ser equiparada, para efeito de torcida, à que os fãs dos Beatles e dos Stones vêm fomentando, eu arriscaria a comparação entre ‘Macunaíma’ e ‘Sergeant Pepper’s’, marco que os Stones tentaram copiar e jamais conseguiram, ainda que, no conjunto da obra, tenham sido mais rebeldes que os Beatles. Na mão inversa, a negritude sonora dos Stones equivaleria àquilo que os Beatles jamais conseguiram.
‘Macunaíma’ desempenha, até às avessas, na minha óptica, a síntese intercambiante e
dialética dessas contradições. O Mário Beatle foi mais negro que o Oswald Stone, que foi mais índio que Mário. O herói descaracterizado foi mais cafuzo, mais mameluco e mais mulato que todos os Marioswalds Beatlestones da vida real. A criatura devorou, antropofagicamente, seu criador”.

Iacyr Anderson Freitas
“A obra multifacetada de Mário de Andrade representa, para a cultura brasileira da primeira metade do Século XX, um momento de renovação ímpar. O autor de ‘Macunaíma’ militou, com qualidade, em diversas áreas do panorama estético tupiniquim. Sem o seu peculiar empenho – como articulador, crítico, poeta e prosador –, o movimento modernista brasileiro não teria alcançado a enorme projeção que a história lhe reservou”.
(O desenho que ilustra esta parte da matéria foi feita por mim e publicado no livro Astronomia do Macunaíma de Rogério de Freitas Mourão pela Editora Francisco Alves)

24.7.08

Mais um brinde - Um cartum de João Zero

Depoimentos sobre Macunaíma


(Hoje publicaremos uma parte da continuação da longa matéria apurada por Jorge Sanglard. Vão para o espaço cibernético alguns depoimentos de importantes figuras das letras e artes dessa terra com muita saúva e pouca saúde e de outras terras de além mar)
Depoimentos inéditos sobre Macunaíma e Mário de Andrade
Mário de Andrade e Portugal
/ Arnaldo Saraiva
Já se disse que Mário de Andrade foi “autor de grandes obras falhadas” e foi “segundo em todos os géneros”.O que não deixa de valer como grande elogio quando se sabe da existência de muitas obras primas que são capelas imperfeitas ou da quantidade de géneros cultivados pelo autor de Amar, Verbo Intransitivo. E quando se sabe que ele viveu pouco mais de meio século, bem menos, por exemplo, do que os outros grandes Andrade do modernismo.
De qualquer modo, não se pode negar que há um género em que ele foi primeiríssimo - a epistolografia. Convencido de que tinha que cumprir uma missão cultural num país atrasado, mas também com a vaidade ou a veleidade de ser ”papa do modernismo”,
inundou o Brasil com cartas, gastou muito do seu tempo, num tempo sem internet, a catequizar ou a dialogar por escrito com os seus pares e com qualquer bicho careta que o contactasse.
Nas suas incontáveis (até hoje) mensagens nem sempre a evidente cordialidade ou generosidade disfarçava alguma impreparação filosófica e alguma viciada teorização.
Por exemplo: sobre o Brasil, que tentava a todo o custo “unificar”, ele que surpreendeu o arlequinesco de S. Paulo, ou a sua própria fragmentação (“Eu sou trezentos”...), ou sobre a língua, para que inventou uma divertida Gramatiquinha, ou sobre Portugal, que em carta a Drummond chegou a dar como “paisinho desimportante para nós”.
Escrita por sinal quando em Portugal andava Pessoa, essa frase podia traduzir um normal ressentimento anti-colonialista, que aproximava o seu autor de integralistas ou de primários lusófobos então com sucesso garantido, mas até como “boutade” pareceria imprópria de um autêntico modernista, ou de um autêntico brasileiro, que ainda por cima se queria folclorista e etnógrafo.
Poucos anos antes de morrer, Mário viria a confessar que o seu antigo desprezo pela cultura “portuga” só se devia à sua ignorância dela. Mas numa das (significativamente, poucas) cartas que mandou para Portugal, uma carta-dedicatória inédita dirigida a Adolfo Casais Monteiro, já em 1934 ousava escrever, também com exagero: “Talvez dentre os brasileiros da minha geração nenhum esteja tão próximo dos portugueses quanto eu”.
E para que o seu destinatário não caísse das nuvens, logo se justificava dizendo que o “gosto de diferenciação” representava psicologicamente nele “mais um traço de amor”: “Amar Portugal por Portugal, por ser português, e não porquê /sic/ seja tradição minha”.

João Gilberto Noll
“De fato, é difícil se imaginar a literatura brasileira de hoje sem a existência de Mario de Andrade. Ele refez a trajetória do herói romanesco brasileiro, que tinha nas sutilezas irônicas de Machado a sua marca indelével. ‘Macunaíma’ aposta na carnavalização da vida vivida abaixo do Equador. E reencena a língua portuguesa, no sentido de explorar uma linguagem com uma brasilidade frenética, grotesca, desproporcional, patética. Esse romance parece se entreter muito mais com uma atmosfera epopéica (mesmo que paródica) do que na ordem do romance burguês, voltado com freqüência para a lenta formação de um protagonista de talhe realista, com uma narrativa conduzida com certa erudição na revelação dos detalhes físicos e anímicos. Acho que, sem Macunaíma, o ensaísmo do escritor brasileiro, de propagação modernista, correria o risco de, com o tempo, se esfarinhar. Em ‘Macunaíma’, sai do palco o herói problemático do Século XIX e entra um personagem-síntese dessas pulsões ao sul do mundo, caótico em sua complexidade, manhoso, teatral. Sim, era possível chegar aí. E Mário chegou”.

Fábio Lucas
“Mário de Andrade dialogou com o Brasil inteiro, oral e escrito, e queria romper com o retrato do Brasil de feição luso-estrangeirada, eurocêntrica. Compôs num fluxo ‘Macunaíma’ (rascunhado em 1926) na seqüência de estudos folclóricos e antropológicos, nos quais pretendia surpreender o rosto da ‘entidade nacional dos brasileiros’. Romance (ou poema herói-cômico) cujo protagonista, tendo mais de uma face, é cognominado ‘o herói sem nenhum caráter’. Ou seja: sem feitio moral ou sem característica. O relato escapa das convenções, quer na articulação causal-temporal, quer no emprego da língua, inçada de desafios morfo-sintáticos. Ao apresentar o seu ruidoso livro, Mário de Andrade reúne algumas características do brasileiro que se aprofundaram com o tempo: a honradez elástica, a gatunagem sem esperteza, o improviso, a falta de censo étnico (que os novos colonizadores estadunidenses tentam impingir-nos sob a forma de racismo em cotas, compartimentado, não miscigenado), a sensualidade pornográfica, presente no que o romancista chama de rapsodismo popular. Mário de Andrade quis pensadamente desgeograficar o seu herói, o que significa desprovinciar o Brasil. Mas as várias anotações que fez para explicar a obra contêm ainda certo absolutismo do autor, traço hoje em dia contestado, quando se admite que a cada leitura corresponde uma interpretação, uma obra diferente, porque o leitor é que dá sentido às palavras do autor. Entretanto, ‘Macunaíma’ se tornou marco da novelística brasileira”.

Luiz Ruffato
“Para mim, há dois grandes pensadores da cultura brasileira. José de Alencar, no Século XIX, e Mário de Andrade, no Século XX. E, curiosamente, de certa maneira, Mário de Andrade retoma alguns temas e reflexões de Alencar, pois ambos propõem a fundação de uma cultura nacional, integradora, que, embora respeitando as características regionais, deságue num todo homogêneo. ‘Macunaíma’ é a realização ficcional dessa proposta. É o primeiro, e talvez único, romance regional nacional brasileiro. Neste livro, Mário de Andrade faz de um personagem arraigadamente regional – amazônico, melhor dizendo – o grande emblema do país. Interessante porque ele consegue realizar num romance o que Alencar tentou em vários (‘O Sertanejo’, ‘O Gaúcho’, ‘O tronco do Ipê’, ‘Iracema’). E esta linha de continuidade – que abarca o Brasil como um todo formado por partes – se coloca em oposição a outro grande filão do pensamento brasileiro – que inclui Franklin Távora e Gilberto Freire, por exemplo, que pensam o país como várias partes que formam um todo. Os primeiros, revolucionários, integradores, progressistas. Os segundos, reacionários, xenófobos, conservadores”.

Moacyr Scliar
“Mário de Andrade não era apenas um grande poeta e escritor, era também um homem e múltiplos talentos, que incursionou com graça e agilidade por várias áreas do conhecimento e da cultura: música, artes plásticas, História, folclore. De sua obra multifacética um belo e curioso exemplo é ‘Namoros com a Medicina’ cuja primeira edição data de 1939, livro que aliás representava a volta do autor ‘ao velho vício da literatura’, segundo sua própria expressão, pois desde 1934 estivera ‘jogado fora da escrita, por paixões talvez mais humanas.’ Os dois ensaios que compõem o livro talvez não sejam textos ‘apaixonados’ mas nem por isso deixam de despertar prazer e admiração. O primeiro, ‘Terapêutica musical’ resulta de uma palestra proferida na Associação Paulista de Medicina e nela Mário fala com assombroso conhecimento da musicoterapia. O segundo ensaio, ‘A medicina dos excretos’ é ainda mais surpreendente. Nele, e valendo de seus conhecimentos do folclore, Mário faz uma análise, psicológica inclusive, do uso da urina e de excrementos na medicina popular. E conclui, com seu típico e irônico humor: ‘Não vá a observação se algum médico diagnosticar eu seja um escatófilo também. Não creio. E nunca mais porei a mão nestes assuntos, arre!’”

Milton Hatoum
“Mário de Andrade foi um intelectual completo, um humanista erudito e libertário, apaixonado pela cultura brasileira, mas sempre atento às boas novidades do exterior. Não por acaso ele foi um dos primeiros no Brasil a ler a obra de J. L. Borges. Ainda jovem ele estudou música, e isso foi importante para desenvolver sua sensibilidade artística. Na verdade, Mário transitou por várias linguagens: poesia, prosa, crítica literária e musical, cultura popular, patrimônio histórico, arquitetura, artes plásticas. A formação musical e a viagem pela Amazônia em 1927 foram decisivas para a elaboração da ‘rapsódia’ Macunaíma. A meu ver, essa rapsódia é uma espécie de prosa poético-polifônica, movida por uma imaginação romanesca em que os mitos ameríndios e a oralidade de uma sociedade em formação ocupam um lugar central. Macunaíma nos diz que a busca de uma identidade nacional é apenas isso: uma busca sem fim. E que a nossa identidade é mestiça, plural. Nesse sentido, ele foi um antropólogo do futuro, pois cedo ou tarde a Europa e o Ocidente serão mestiços”.
(Amanhã tem mais)

Cartum de Sizenando no Vestibular da UERJ



Usaram um cartum do meu amigo e grande cartunista Sizenando (veja nos favoritos deste blogue) no exame de qualificação Vestibular da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). É isso aí, belo cartum!

Charge do dia 24 de Julho - A Bela e a Fera

23.7.08

Mundo Bizarro se dissolve diante do som da guitarra de Bapp


Hoje decididamente foi um dia que começou esquisto. A minha gripe, companheira destes últimos tempos de cobertor e vitamina C ameaçou me largar na hora do café da manhã. Nem deu tempo de digerir o café com pão e as notícias que me deixaram boquiaberto e com dor de dente (depois explico esse detalhe odontológico). As manchetes gritaram e pensei que fosse delírio da febre: 1- Menino morde cão pitbull, 2- Batman bate na mãe e na irmã, 3- O antes cabeludo e carniceiro dos Balcãs Radovan Karadzic foi preso disfarçado de curandeiro hippie em Belgrado. (Neste caso a foto vale mais do que milhões de palavras) e 4- Pai de Amy Winehouse diz que prefere estátua de cera da filha em casa do que a real (ou surreal, sabe-se lá?). Foi aí que resolvi voltar para a cama e me cobrir para fugir desse mundo maluco que me esperava lá fora. Mas meu bunker cedeu diante de compromissos inadiáveis de trabalho e tive que ir até a cidade, onde tudo isso se dissolveu quando revi (e reouvi) Sérgio Bapp ali naquela praça que fica na rua São José, perto do Mac Donalds, lá estava ele derdilhando sua guitarra inconfundível, arrasando num blue de chorar na calçada, pedir perdão por Robert Johnson e seu pacto com o diabo naquela encruzilhada do delta do Mississipi. Não entendo as razões da produção de Jô Soares que não chama esse cara para dar uma canja no programa do gordo, e quem sabe, talvez possa render até uma boa entrevista.
Nesse momento percebi que bateu um veranico na cidade, um calorzinho sem-vergonha que animou o pessoal no fuzuê das avenidas e lá em cima um céu azul de paleta de Van Gogh compensava tudo. Tomei um copo d'água, ouvi um pouco do som de Bapp e mentalmente orei para que ele tivesse boa sorte, pois eu já tinha ganhado o dia, seu som me salvou das outras manchetes dos jornais que eram muito mais cabeludas e eu nem tinha lido e não vou ler.

Caricaturas que eu fiz: Ferreira Gullar

22.7.08

Macunaíma - 80 anos de ai que preguiça!


(Este blogue começa a partir de hoje a publicar matéria apurada por Jorge Sanglard(*) - o texto foi publicado originalmente no Jornal O Primeiro de Janeiro “das Artes das Letras”Porto – Portugal em 21/07/2008 - vamos fazer como Jack o Extirpador e publicá-la por partes para não ficar muito longa para ler na telinha)
80 anos de Macunaíma
Reflexões sobre a rapsódia de Mário de Andrade

Em julho de 2008, a obra-prima modernista de Mário de Andrade (09/10/1893 – 25/02/1945) “Macunaíma” completa 80 anos e o Brasil celebra os 115 do nascimento do escritor. Os 800 exemplares da primeira edição e suas 288 páginas marcaram a literatura brasileira de forma definitiva. Apesar da frase “Ai, que preguiça!” simbolizar o estado de espírito do “herói sem nenhum caráter”, o certo é que nestes 80 anos de presença na vida cultural brasileira “Macunaíma” permanece desafiando o tempo e provocando reações as mais diversas. Amado por uns e questionado por outros, o livro é uma autêntica imersão nas coisas do Brasil e, sem dúvida, é um dos marcos da língua portuguesa no século XX.

Até o Carnaval do Rio de Janeiro abriu alas para o personagem de Mário de Andrade, em 1975, quando a Escola de Samba Portela cantou na avenida o samba-de-enredo “Macunaíma”, de David Corrêa e Norival Reis: “Vou me embora, vou me embora / eu aqui volto mais não / vou morar no infinito / vou virar constelação / Portela apresenta, do folclore tradições, / milagres do sertão a mata virgem / assombrada com mil tentações / Macunaíma, índio branco catimbeiro, / negro sonso, feiticeiro, / mata a cobra e dá um nó...”.

Para marcar o cinqüentenário da obra de Mário de Andrade, em 1978, Telê Porto Ancona Lopez lançou uma edição crítica de “Macunaíma” (LTC) apresentando o texto da rapsódia ilustrado por oito guaches de Pedro Nava (05/07/1903 – 13/05/1984), feitos em 1929, e buscando desvendar o processo literário do escritor, além de refletir sobre as múltiplas leituras que o livro suscitou. Esta edição comemorativa também trazia outras ilustrações realizadas em épocas diferentes: um desenho a nanquim e lápis de cor de Cícero Dias, um desenho a lápis de cor cinza sobre papel e uma pintura de Tarsila do Amaral, duas águas-fortes de Carybé, um desenho a tinta sobre papel de António de Alcântara Machado (Totó), um desenho de Del Pino, uma ilustração de Euclides L. Santos e uma gravura de Santa Rosa para a capa da segunda edição, publicada em janeiro de 1937 pela José Olympio Editora com mil exemplares. A força de “Macunaíma” continua sedutora, oito décadas depois, e ainda inspira leituras diversificadas.
Autêntico ícone modernista brasileiro, “Macunaíma” inspirou também o saudoso artista plástico mineiro Arlindo Daibert (12/8/1952 – 28/8/1993) e ganhou adaptações no cinema e no teatro no Brasil. Em 1969, a obra foi filmada pelo cineasta Joaquim Pedro de Andrade, utilizando, sempre que possível, as palavras do livro. Eduardo Escorel assinou a montagem, Carlos Alberto Prates Correia foi o assistente de direção e no elenco despontavam Grande Otelo, Dina Sfat, Paulo José, Milton Gonçalves, Jardel Filho, entre outros. E, em 1978, o encenador Antunes Filho dirigiu uma premiada adaptação teatral do Grupo Pau Brasil e de Jacques Thiériot, tendo como cenário a floresta amazônica em meio a sons de água e barulhos de pássaros, de ramagens e de animais. Essa rede mágica sonora ambientava toda a ação das personagens.
Agora, em 2008, a cantora Iara Rennó lança o CD “Macunaíma Ópera Tupi” -”Macunaó.perai.matupi” (Petrobras – MinC), trazendo músicas de sua autoria a partir de letras extraídas de trechos da obra de Mário de Andrade. A cantora afirma que as formas da música popular folclórica do Brasil se misturam com a música contemporânea que ela ouviu. A partir daí, diz Iara, surgiu este disco, conservando e corrompendo a tradição, colando e recriando, bem ao gosto do poeta e ao sabor da obra, “na fala impura”.
O disco conta com diferentes produções em cada música, articulando artistas como Siba, Kassin, Moreno Veloso, Benjamin Taubkin, Beto Villares, Alexandre Basa, Maurício Takara, Daniel Ganjaman, Quincas Moreira e Buguinha Dub. E ainda traz como convidados Tom Zé, a banda Fuloresta, Arrigo Barnabé, Dante Ozetti, Funk Buia, Barbatuques, Tetê Espíndola, Toca Ogã, Da Lua, Bocato e Anelis Assumpção. Segundo Iara, o CD será distribuido em escolas públicas de ginásio e segundo grau em todos os estados do Brasil, como complemento de estudo da obra “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter”. O projeto “Macunaó.perai.matupi” ou “Macunaima Ópera Tupi” nasceu a partir de um estudo de “Macunaíma”, quando Iara cursava literatura na faculdade de letras da USP.
Pedro Nava criou os oito guaches a partir de “Macunaíma” para devolver uma provocação do amigo Mário de Andrade, que tinha enviado o livro com a dedicatória: “A / Pedro Nava, / pouco trabalhador, / pouco trabalhador, / o / Mario de Andrade / São Paulo 14 / VIII /28”. Ao aproveitar as páginas em branco da primeira edição, Nava desenhou sua visão de Macunaíma e devolveu-a a Mário estabelecendo um diálogo criativo intenso e vigoroso. Na verdade, muitos anos antes de se tornar o maior memorialista brasileiro, Pedro Nava transitava no desenho com desenvoltura e personalidade instigante. Estes oito guaches são a prova incontestável.
A arte de Arlindo Daibert (também juizforano como Pedro Nava), 14 anos após a morte do artista plástico mineiro, é outro testemunho vivo da ousadia e da inventividade de quem sempre encarnou a criação como um desafio e um estímulo, além de um compromisso com a produção do saber. O legado de Arlindo Daibert deixa explícita a inquietação, a precisão e a afiada percepção de um artista em permanente processo de reflexão sobre a linguagem do desenho. O livro “Macunaíma de Andrade” (Editora UFJF), com trabalhos de Daibert, editado em 2000, representou um verdadeiro mergulho na essência de “Macunaíma” e uma autêntica rapsódia, com direito a novas apropriações e à exploração de muitas outras vertentes.
Assim, a editora prestou não só um tributo à memória de um dos mais significativos artistas brasileiros da segunda metade do século XX como reafirmou a intenção de manter ao alcance do público uma obra impregnada de inquietação do primeiro ao último traço, da primeira à última linha. A interpretação visual de Arlindo Daibert merece ser exposta permanentemente para que mais e mais pessoas vislumbrem toda sua criatividade e, a partir daí, ampliem o debate sobre o papel de Mário de Andrade na renovação da literatura brasileira e como fonte inspiradora e questionadora.
Arlindo Daibert criou 58 imagens em técnica mista, lançando mão do desenho, pintura e colagem, e outros 10 esboços, reafirmando o diálogo com a rapsódia de Mário de Andrade e acentuando a forte influência da matriz geradora marioandradina. A cada nova leitura, seja nas artes plásticas, seja na música, ou cênica, ou ainda cinematográfica, “Macunaíma” permanece oito décadas após seu lançamento como uma matriz expressiva e sedutora. Na apresentação do livro de Daibert, Telê Porto Ancona Lopes diz tudo: “Nessa navegação que se apropria do texto com alta exigência no artefazer, ‘Macunaíma’ se transforma, de fato, em ‘Macunaíma de Andrade Daibert’, soma de universos”. E é exatamente a possibilidade de permitir esse entrecruzamento de universos que faz da obra-prima de Mário de Andrade uma fonte permanente de inspiração, mesmo passados oito décadas da primeira edição.
A relação essencialmente inventiva expressa pelo artista plástico nos desenhos, pinturas e colagens de sua reflexão sobre “Macunaíma”, reafirma o compromisso inventivo de Arlindo Daibert. Toda a força criativa desta interpretação aberta da obra de Mário de Andrade pode ser percebida e acompanhada no Diário de Bordo, que revela como o artista juizforano iniciou um estudo detalhado da obra de Mário de Andrade e passou a se enveredar nas artimanhas de “Macunaíma”, entre 1981 e 1982, para elaborar uma de suas mais intensas séries. Como muito bem ressaltou o jornalista e crítico de arte mineiro Walter Sebastião, ao escrever sobre “Imagens do Grande Sertão - Arlindo Daibert” (Editora UFMG – Editora UFJF), lançado em 1998, a incrível rede de significados elaborada por Daibert exprime a síntese de toda a sua inteligência no manuseio de signos/símbolos e toda a sua habilidade artesanal. Tanto ao se enveredar pela rapsódia de Mário de Andrade quanto pelos caminhos do “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, Daibert assumiu riscos, enfrentou o desafio de peito aberto e criou uma obra maior, onde a reflexão marca presença em cada momento, com a interpretação do artista plástico abrindo perspectivas novas sobre o original de escritos tão díspares e tão contundentes.
Um artista capaz de deixar fluir uma forte crença na responsabilidade cultural de sua arte, Daibert sempre se recusou ser um mero “produtor de imagens” e defendia como compromisso do artista a produção do saber. Assim, Arlindo não levou em conta o contexto pessoal do escritor Mário de Andrade e não fez uma releitura técnica de “Macunaíma”. Afinal, não se trata de uma ilustração para a obra marioandradina. Na verdade, Arlindo ousou criar sem limitações, tendo como ponto de partida o estímulo literário.
No livro “Macanaíma de Andrade”, o saudoso artista plástico mineiro conseguiu, mais uma vez, romper limites e refletir sobre a linguagem do desenho. O desafio da criação nunca intimidou Arlindo Daibert, pelo contrário, sempre serviu como estímulo. Ao criar as imagens de “Macunaíma de Andrade”, Arlindo Daibert explorou toda a diversidade de situações presente na obra-prima de Mário de Andrade, deixando muito claro que, ao realizar seu trabalho, seja em desenho seja em pintura, ou ainda em colagem, o fundamental era exercitar uma linguagem de encarar o mundo. E ressaltava que não se podia confundir um método de raciocínio com apenas uma produção de imagens. A característica da linguagem gráfica de Arlindo Daibert não poderia deixar de ser a criação da imagem, mas sempre como conseqüência e não como fim de seu projeto. E o artista plástico explicitava este ponto de vista: “O meu projeto não é criar imagens, o meu projeto é refletir sobre as coisas através das imagens”. Isso criou uma dinâmica capaz de não prender a criação de Daibert a nenhuma fórmula gráfica, a nenhum estilo gráfico.
O artista plástico ainda confidenciou: “Eu tenho um estilo de raciocínio e não um estilo gráfico. Os meus estilos gráficos se adaptam às problemáticas que eu estiver refletindo em cada momento”. Este era o grande trunfo de Arlindo Daibert como um artista afiado e afinado como seu tempo. Avesso a concessões e a limitações, Daibert fazia da ousadia de dar um passo à frente o estímulo para continuar caminhando até o infinito. Essa percepção mágica diferenciava Arlindo e está viva e presente em sua arte.
Amigo de Arlindo Daibert e guardião de suas três mais importantes séries reunidas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – “Macunaíma de Andrade”, “Imagens do Grande Sertão” e “Alice” –, o colecionador Gilberto Chateaubriand ressaltou a genialidade do artista plástico mineiro: “Arlindo, no seu período de vida, foi talvez o mais completo desenhista que nós tivemos, porque ele aliava não só a habilidade e a técnica do traço, mas também a cultura e a pesquisa. Basta conferir os desenhos surrealistas do início da carreira, como também os de fundo mais histórico e narrativo, e até os que traziam um contingente autobiográfico”. Em seu pouco tempo de vida, Arlindo deixou uma obra expressiva e consistente tanto qualitativamente quanto quantitativamente. É justamente aí, segundo Chateaubriand, que se observa sua genialidade, porque era um criador frenético e sempre decidido.
Ao receber da família de Daibert a série “Imagens do Grande Sertão”, após a morte do artista plástico mineiro, complementando o acervo em sua coleção de arte contemporânea, Chateaubriand revelou: “É com muita emoção e muita saudade que recebi esta obra, porque uma das últimas visitas, senão a última visita, que recebi de Arlindo foi justamente para me dizer que fazia absoluta questão que a série sobre o livro ‘Grande Sertão: Veredas’, finalmente, compusesse a trilogia com os trabalhos que eu já tinha dele. E que eu destinasse sempre os trabalhos para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o MAM, onde ele sempre mereceu uma acolhida generosa”.
O poeta e pesquisador Júlio Castanõn Guimarães, no livro “Caderno de Escritos” (Sette Letras), afirmou que o artista, tendo iniciado brilhante carreira no início dos anos 70, impôs-se logo pelo virtuosismo de seu desenho. “Nos cerca de 20 e poucos anos em que desenvolveu sua atividade, incorporou a esse traço inicial uma série de outras peculiaridades, em que se destacava a permanente discussão da própria criação artística”. A importância de Arlindo Daibert como artista plástico, segundo Júlio Castanõn, já foi devidamente - embora não suficiente - ressaltada, não só pela sua curta trajetória, mas também pelo reconhecimento dos principais críticos de arte do país.
Sua intensa e múltipla produção era acompanhada de (e refletia) uma permanente preocupação com questões que ultrapassam os limites da técnica, ressaltou Castanõn: “A reflexão, a indagação, a especulação sem dúvida foram determinantes em seu percurso. Dos bicos-de-pena iniciais, ligados a uma tendência ao fantástico, até os objetos de fria e violenta elaboração conceitual, o caminho não envolveu apenas um arrojo de pesquisa, mas também um embate com a noção mesma de produção artística”.
“Um franco atirador que jamais erra o alvo”. Assim, o jornalista, crítico de arte, ex-secretário estadual de Cultura em Minas Gerais e atual prefeito da histórica Ouro Preto, Angelo Oswaldo, definiu o artista Arlindo Daibert, lembrando que ele enfatizava a individualidade como condição imprescindível numa época de padronização e massificação da própria subjetividade. “Incentivador de projetos à sua volta, na qualidade de professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e curador de exposições, alimentava o crescimento de valores novos, ao mesmo tempo em que reabastecia para o desafio da criação”.
Amigo e conhecedor de sua obra, Angelo Oswaldo considera Arlindo Daibert um dos mais importantes artistas da contemporaneidade brasileira. “A morte dele interrompeu uma trajetória que nos levaria definitivamente a uma das obras mais significativas do século XX”. E ressalta, ainda, que o artista foi responsável por ter colocado Juiz de Fora como um centro de referência de vanguarda no cenário artístico nacional.
A interação entre a literatura e visualidade, ponto essencial da proposta artística de Arlindo Daibert, é apontada por Angelo Oswaldo como uma contribuição ímpar: “Há um processo de integração entre a literatura e a visualidade - que ele soube resolver muito bem - em que a força da linguagem se transforma na grande energia autônoma da expressão visual. Ele conseguia extrair a poética da literatura e dar suporte à sua expressão visual, sem violentar a autonomia da imagem”. Segundo Angelo Oswaldo, a obra visual de Daibert deve um tributo à literatura, mas é também autônoma, pois cria sua linguagem própria a partir de símbolos literários. “Dentro das artes plásticas brasileiras, talvez seja a obra mais intelectualizada, porque Arlindo trouxe para o campo da criação plástico visual toda a sua rica cultura nas áreas de literatura, lingüística e filosofia”.
Daibert abordava de maneira singular, como desenhista, pintor, criador de objetos e instalações, obras de autores como Mário de Andrade, Murilo Mendes, Guimarães Rosa e Lewis Carroll, entre outros. Além do legado artístico, em termos de acervo, Arlindo deixou um trabalho muito importante para a cultura de Minas Gerais e do Brasil, contribuindo, de modo especial, para a revalorização da presença do poeta Murilo Mendes (1901-1975) no país e para a instalação em Juiz de Fora do Centro de Estudos Murilo Mendes, atual Museu de Arte Murilo Mendes, instituição da Universidade Federal de Juiz de Fora, que abriga a obra e a pinacoteca do poeta juizforano.
(*) Jorge Sanglard - Jornalista brasileiro, pesquisador e organizador da antologia “Poesia em Movimento”
(Continua)

Charge - Um mês de bafômetro

21.7.08

Jorge Arbach ganha prêmio HQMIX


Tenho a imensa satisfação de comunicar que o grande ilustrador, cartunista e professor Jorge Arbach foi um dos vencedores do HQMIX - Sua Tese de Doutorado ”O Fato Gráfico - O Humor Gráfico como Gênero Jornalístico” foi escolhida este ano e a premiação vai ser em Sampa no dia 23 de julho de 2008 às 19h00 no Sesc Pompéia.
Parabéns grande Jorge!
(Em tempo, a ilustração desta nota foi feita por Jorge Arbach e está no seu livro "Desenhos Falados")

Cartum enigma

Caricaturas que eu fiz: Chico Buarque

20.7.08

Mais um brinde - Um cartum de João Zero

Gripe vai e volta


O blogueiro que vos fala (com voz rouca) pegou uma gripe danada na semana passada. Conseguiu um habeas corpus ,mas ela voltou com tudo. Por motivo de força menor então, o blogueiro está debaixo de cobertores na base da vitamina C, chocolate quente e doses cavalares de TV. Quer dizer, a continuação da pensata sobre Antonioni fica para a próxima semana, assim como outros cometimentos.

Ilustração: "Para um conto mínimo"

19.7.08

16.7.08

Monica Vitti, eterna musa de Antonioni


(Estes são esboços de uma tentativa de chegar perto da obra de Michelangelo Antonioni - Na verdade são fragmentos - uma espécie de ensaio que a gente não se sabe muito bem onde vai parar - assim como nos filmes que ele fez)
Michelangelo Antonioni, antes de mais nada tem um mérito - eternizou a imagem de Monica Vitti, para nosso deleite.
Arrisco dizer que sem Monica Vitti,(nascida Maria Luisa Ceciarelli) os filmes que receberam o rótulo de trilogia da incomunicabilidade: os premiados A Aventura (L'Avventura), A Noite ( La Notte) e O Eclipse( L'eclisse), além de Deserto Vermelho (Il deserto rosso)- que é uma espécie de continuidade dessas obras, não teriam o mesmo sucesso de crítica e acredito que nem alcançariam grande público.
Monica Vitti, lindíssima, inteligente, expressiva e como disse um colega blogueiro, sensual sem precisar tirar a roupa para isso. Alguém comentou que ela também era muito engraçada, e eu a vi numa entrevista que mostrou que além disso era bastante atrapalhada, solta, bem diferente das mulheres que encarnou nestes filmes de Antonioini. Na verdade, parece que ela também fez algumas comédias , mas foi com seu talento monumental que conseguiu encarnar os papéis das mulheres complexas, com o interior labirintico, no mais das vezes confusas, inocentes ou neuróticas que se deslocavam pelos cenários dos filmes do diretor italiano com o olhar perdido num horizonte que nunca conseguimos alcançar. Com este fragmento quero dar uma base concreta para o cinema que Antonioni fez. Um cinema cerebral, que flertava com o improviso que contava com o instinto dos atores, e neste caso desta magnífica atriz que foi central, e além disso, marcou com sua beleza seus filmes fundamentais.

15.7.08

A menor luminária do mundo


Clique na imagem para ampliar, caso contrário não vai dar para ver a luminária.

Caricaturas que eu fiz: Hebe Camargo

14.7.08

Felipe Taborda em Madri e Barcelona - O Desenho Gráfico Latinoamericano se espalha no mundo!


O grande designer Felipe Taborda lança no dia 16 de Julho em Madri e no dia 17 em Barcelona o livro Latin American Graphic Design (Diseño Gráfico Latinoamericano)(O livro leva assinatura de Taborda e Julius Wiedemann).
Para saber mais detalhes sobre o evento de Madri, é só clicar na imagem para ampliar.
Em Barcelona, o lançamento vai rolar a partir das 19 horas na sede do FAD Plaça dels Ángels, 5-6/ 08001. Como em Madri, também vai acontecer um debate sobre a existência de um desenho gráfico Latinoamericano, só que desta vez, com a presença de Mario Eskenazi, Javier Mariscal, Peret e América Sánchez.
A editora é a badalada Taschen .
Detalhe: O livro pode ser folheado no site da editora ou seja www.taschen.com
Todos lá! O último a chegar é a mulher do toureiro!

Ilustração: "Caranguejo exibicionista"

13.7.08

Mais um brinde - Um cartum de João Zero

A wop bop a loo bop a lop bam boom


Hoje se comemora o dia mundial do rock. Que coisa mais careta né!? Mas é isso aí, um ritmo que começou quebrando cinemas e descendo a rua Augusta a 120 por hora acabou conquistando um dia no calendário para apagar mais uma velinha. E os dinossauros continuam na estrada: cabelos longos, alguns pintados, quando não brancos e ainda outros carecas e desdentados.Outro dia me surpreendi ao encontrar uma banda que eu adorava, o Grand Funk Railroad, que é um tremendo conjunto de rock. O Grand Funk que parecia ter sumido, teve uma edição nova que andou pintando nas raras casas de CDs. Como esqueceram desses caras fabulosos? Mas não é isso que eu queria falar, na verdade vou publicar uma parte de uma velha "anacrônica" em que falei sobre a face oculta do rock. Aumenta o rádio que isso também é roquenrol!
Essa coisa de ver o rock com somente símbolo da rebeldia, associado ao sexo e às drogas (a desordem dos fatores não altera o produto)não está com nada.
Não se pode equecer que o rock velho de guerra tem lá o seu lado família. Claro que não estou falando da família Osbourne. Antigamente, a gente pensava em roqueiro e já vinha aquela imagem de um defunto que passou desta para melhor por exagerar no uso de alteradores de consciência. Lembra do Cazuza? Então, o falecido e talentoso poeta, em sua época já gritava nos circos voadores da vida que seus heróis tinham morrido de overdose. A lista de baixas no front do rock é grande (lembrar que também existe o front do jazz), Vamos ficar só nos casos mais rumorosos. Brian Jones (dos Stones),apagou em circunstâncias misteriosas, aos 27 anos na sua piscina. Disseram que era por causa do consumo além da conta de tóxicos que o levaram a ter um ataque cardíaco (recentemente alguém se apresentou como seu assassino (existe até um filme sobre esse caso).
Jim Morrison que viajava sem sair de casa, também morreu dentro d’água, numa banheira em Paris e até hoje perturba o sono dos habitantes do cemitério Père Lachaise. Janis Joplin sucumbiu num vale de heroína. Jimmi Hendrix não morreu de overdose, como dizem as más línguas, mas asfixiado no próprio vômito pois tinha tomado remédio para dormir misturado com álcool.Kurt Kobain se matou com um tiro, mas era viciado em heroína e isso tem a ver com seu triste e solitário final, e seu mundo era só asfixia.
Mas o rock também possui o seu lado solar, aquele que salvou vidas.
Quando a gente começa a ter que escrever ou criar uma coisa cotidianamente, principia também a ver relações que antes ficariam inertes opacas, começa a pensar o mundo e fuçar coincidências...
Faz um certo tempo, li num livro sofrido de Mikal Gilmore, "Tiro no coração", que os Beatles tinham aberto para ele "uma porta para o futuro do qual minha família não tinha condições de participar". É preciso dizer que Mikal é um sobrevivente de uma família em decomposição. É irmão do famoso Gary Gilmore, o assassino estranhíssimo, que conseguiu transformar sua condenação à morte no estado de Utah, nos anos 70, num espetáculo que ele conduziu até sua execução por um pelotão de fuzilamento no dia 17 de Janeiro de 1977. A crônica de seu sombrio caminhar entrou para a história do “novo” jornalismo americano em "A canção do carrasco" de Norman Mailer. O jovem Mikal através do rock, consegue pular fora da triste saga de sua família marcada pela morte e sofrimento. Diz ele:-"Curiosamente o rock'nroll acabaria sendo de maior valia para mim ao longo dos anos e cumpriria a função de iluminar o novo quadro do paraíso perdido e reencontrado..."
Sua história familiar é muito singular,porém revela algo da chamada “América profunda”, o entorno da “wasteland”.
Em lugar do sonho, da terra das oportunidades, o pesadelo, o vazio, o horror. Só lendo o livro de Mikal para se ter idéia das dimensões dessa tragédia. Seu relato se incia desta maneira: “Um a um eu os vi morrer, todos eles. Primeiro meu pai. Depois meus irmãos Gaylen e Gary. Finalmente minha mãe, uma mulher amarga e devastada. No fim havia apenas eu, o caçula, e meu irmão Frank, o primogênito. Então um dia, quando a dor da história da família se tornou intense demais para suportar, Frank simplesmente mergulhou em um mundo de sombras…”
Mikal foi salvo pelo rock de forma muito objetiva também: Nele encontrou um emprego- o de crítico e colaborador da revista “Rolling Stone.
Num cenário diverso, econtramos outro exemplo da função redentora do rock. Numa noite antiga de reprises , revi uma entrevista de José Dumont no programa do Jô. Lá pelas tantas ele fez uma revelação que cruza com o despertar de Mikal: a de que os Beatles(de novo os fab four), e particularmente uma canção que não me recordo o nome, mas acho que foi “Let it be”, fez a sua cabeça. Dumont disse que ao ouvir os rapazes de Liverpool teve um estalo, foi apanhado pelo desejo de viver aquilo que ele sentia que estava naquela canção. Em outras palavras, ele queria aquilo que emanava daquele som, o mundo que aquela música representava.Nesse momento, encontra estímulo para sair de sua cidade (Belém de Caiçara, na Paraíba) e se lançar no mundo à procura daquela abstração de uma vida de possibilidades infinitas de realização…Let it be…
O resultado é esse ator magnífico que apareceu em “Gaijin”
, em “O Homem que virou suco”, “A Hora da Estrela”, entre outros, sem esquecer “Abril despedaçado” e “Os narradores de Javé” Neste último ele faz um papel cômico, revela toda sua criatividade nos cacos que o transformaram em co-autor do filme, segundo sua diretora, Eliane Caffé.
O rock que teve sua fase de má fama, mas não apenas serviu para canalizar as energias destrutivas de uma geração, ou de playboys que dirigiam a 120 km por hora nas ruas augustas da vida. Dois jovens , em momentos decisivos, viram no rock a magia que transformou suas vidas.

O rei está nu, ou está vestido de nu?

12.7.08

Crônica da Tinê: Minha Lisa do Joá (Continuação)


O artista foi a casa da família para captar a tal alma florescente. Não fez nenhum croqui. Lisabeth retraiu-se ao notar aquele homem a esquadrinhar seu corpo como se procurasse assimetrias, ou uma pinta natural que a autenticasse como sendo ela mesma e não outra pessoa. Talvez fosse recurso para intimidá-la e ler em seus gestos dissimulados o que sua mudez velava. Por certo ele viu que a jovem valorizava cabelos e mãos, e que nunca lhe disseram que tinha pescoço de cisne, pormenor facilmente corrigível no retrato. Percebeu também alguns paradoxos, como o olhar triste de um ser crítico numa cara avoada em quem é chegado a controvérsias... contudo, naquele momento, a filha de dona Lêda satisfazia a vaidade ao ser musa temporária de um artista. Ele invadiu seu quarto, fuçou seu armário, desaprovou com meneios de cabeça suas roupas da última moda, até rabiscar um vestido em pedaço de papel: um tubinho reto, pala com nervuras, mangas compridas, gola de renda em estilo holandês. Ainda decidiu a cor do tecido: verde-veronês. Começou mal, deve ter pensado minha amiga, ser retratada como uma flamenca em verde-exército, verde-petróleo, verde-garrafa... seja qual for o nome que dessem àquele verde, então, não haveriam panejamentos? Com cabelos soltos e o anel de pérola em primeiro plano, podia ser... "Ora, vamos, não será tão ruim assim, lembre-se que, num frio desgraçado, Claudel posou nua, contorcida sobre um tablado durante horas, a um implacável Rodin, e você estará vestida como uma freira diante de um senhor amável." Lisabeth corou, não sei se de vergonha ou de raiva.

As sessões no ateliê foram mil detalhes resumidos em "Ohhh". Marcas de giz no assoalho de madeira do antigo sobrado. Jirau grande. Parafernália típica. A luz vinha de enormes claraboias. Pé-direito muito alto. Janelas estreitas. Não fosse o trânsito barulhento imaginaria águas plácidas lá embaixo com nenúfares boiando. Cantatas de Bach balbuciadas pelos Single Singers vinham do tocadisco. Petrificada sobre um banco, Lisabeth manteve a pose. O esboço começou pelos olhos. Dias e dias, somente olhos. Traços para o resto. Pausa para relaxar, tomar chá e ver fotos de viagens. Retorno à imobilidade. Durante o vaivém dos olhos - cavalete, modelo, cavalete - o artista entretinha dona Lêda com assuntos variados, de remédio caseiro à política. Quando a modelo angulava a cabeça o artista rápido trocava a música. "Dave Brubeck ou Lalo Schiffrin?" Ela escolhia o tchin-tchin-bum percussivo com sax e piano-jazz para espantar o sono. Às vezes aparecia alguém discreto no ateliê, como o rapaz dos garrafões a carvão - "É filho de um amigo meu, quer ser desenhista mas não delineia uma batata." Ou como a vez em que uma mulher irrompeu sala adentro e o artista de imediato disse em tom defensivo "É dela o vestido que você encontrou!" Um dia Lisabeth se abstraiu das conversas. Observou no artista uma dor disfarçada. Seriam câimbras ou cicatrizes doloridas do tempo de sua militância? Ele notou que ela notara. Assim como ele, ela também tinha olhos sagazes.

A tarefa de posar terminara. Mãe e filha foram espiar. Traços delicados que mal conseguiam enxergar. "Está pronto?!" O artista disse não, dali por diante seria ele sozinho para eternizar os quinze anos. Após grande expectativa, o quadro fora entregue. Em preto e branco. Dona Lêda quase teve um ataque. A filha chegou em casa, doida para contemplar seu presente escondido sob panos. Pela cara da mãe... Lisabeth perguntou aflita: "O que foi? Ele me retratou como um tocador de banjo ou pelada sobre os Arcos da Lapa?" Um tio riu amarelo, "Não... parece mais com a Estrada do Joá." Lisabeth num rompante abriu os panos, olhou, olhou... Ela fora envelhecida por uns dez anos, olhos penetrantes, boca com uma covinha que nunca vira ao espelho, pescoço atenuado por longos cabelos, uma paisagem negra ao fundo, sem o anel de pérola. Assim permaneceu a "Mona do Joá" durante anos, a observar quem passasse pela sala de jantar, mesmo depois que a retratada partiu, até o dia que caiu da parede e se desfez em cacos.

Eu tive mais sorte. Não posei nem para camafeu. Tive um baile ao avesso: almoço com parentes queridos, roupa vermelha futurista com sóis que eu mesma pintei na barra da saia, um namorado com quem toquei ao piano Bife Americano a quatro mãos, anel de pérola à vista de todos, de noite fomos ao Barbarella do Lido, cantaram para mim "Oh Susie Q", meu copo do brinde foi ao chão, "say that you'll be true, and never leave me blue", dezenas de cacos espalhados, cinábrio, nácar, carmesim, cerúleo.
Tinê Soares – julho2008