

(A Cia das Letras começou a relançar os livros do grande escritor Jorge Luis Borges- Temos que comemorar essa inciativa que é muito bacana. Em homenagem ao nosso grande cego que tudo viu aqui está uma caricatura que fiz dele e um conto que fala dele também de minha autoria - os antigos amigos do blogue que me perdoem, mas vou botar de nuevo essa história no ar)
Leilão Pantográfico
As circunstâncias são imprecisas. Incerteza que indica ter acontecido um dia no meio da névoa que cobria a cidade de Buenos Aires, onde dizem, existe uma quantidade extraordinária de mentirosos profissionais – inclusive um que me afirmou que o diretor da Biblioteca Nacional era cego e costumava participar de rituais exóticos.
-Num conto, a história visível esconde sempre a secreta- falava Piglia, enquanto caminhávamos rumo a um prédio cinzento entre Córdoba e Marcelo T. de Alvear.
- Esta Segunda é sempre “narrada de um modo elíptico e fragmentário”. É apenas uma tese, não me leve demasiadamente a sério.
- Nessa altura, já estávamos num elevador de porta pantográfica. Aquela porta corrediça construída como uma grade de varetas que formam uma rede de losangos, os quais se modificam funcionando como uma espécie de sanfona.
- Já ouviu falar do pantógrafo? – me perguntou Piglia. – É um aparelho utilizado para ampliar mapas. No dicionário está escrito que é um “instrumento constituído de um paralelogramo articulado, e com que se pode copiar figuras, modificando-se à vontade a escala do desenho”. Sem uma representação gráfica, fica difícil imaginar tal artefato, e por isso recorri ao traço. Botei no começo dessa história o desenho de um pantógrafo (o esquema de seu funcionamento).
Daí pode-se intuir que a narrativa que se segue foi ampliada, exagerada, mas segue um desenho rigoroso que o tempo se incumbiu de diluir.
Piglia bateu na porta número 969. Só ele sabia que na verdade o algarismo do meio tinha girado, de nove tinha virado um seis. Mas esse é apenas um detalhe que serve para mostrar a antiguidade do prédio. A porta se abriu. Um homem alto, de barba e olhos muito separados nos atendeu. Baixinho, disse que deveríamos permanecer em silêncio, pois o leilão havia começado. A seguir, nos encaminhou para um salão mergulhado na mais absoluta escuridão.
Apenas algumas brasas de cigarros e uma lanterna se movimentavam enquanto se ouviam sons feitos pelo estalar de dedos ou da língua no céu da boca, numa espécie de código que o leiloeiro interpretava como sendo o valor dos lances. Foi aí que Piglia me segredou que era um leilão de histórias e aquele que comandava o espetáculo era o tal fabuloso cego de que me havia falado o embusteiro. As palavras eram expressamente proibidas. Havia uma hierarquia sonora. O ruído “plect” feito pelos dedos era um dos recursos para expressar o desejo de compra de histórias curtas . Um, dois ou três “plects” representavam quantias em dinheiro que poderiam levar a uma novela. Assim como os “tlócs” obtidos com a língua eram moeda viva naquela treva. Os assovios longos e curtos significavam lances de maior importância. Assim, o leiloeiro mapeava os valores em concorrência. Os latidos foram abolidos depois que um canil se instalou na esquina do prédio.
O único que falava era o cego, e o fazia pausadamente, como se pesasse as palavras com gabaritos de ouro:- Num lance prévio de 150 pesos, temos uma história do motorista de um temido gangster que se apaixona pela esposa do chefão – resumiu… Ouviu-se um “plect”. O cego disse:- Vejo que deram um lance de 50. Quem dá mais? Novos “plects”.
-Muito bem, aumentaram para 250. Quem dá mais? Dou-lhe uma… Então ouviu-se o som de uma bochecha se esvaziando: smachhhhh.
-Ótimo, o pregão está formidável. Alguém aumentou o lance, ofereceu mais 150. Agora o valor é de 400.
Dou-lhe uma…, dou-lhe duas… Ninguém oferece mais? Dou-lhe três! Uma autêntica história noir vendida por 400 pesos- bateu o matelo o leiloeiro. Palmas discretas se ouviram. Depois um curto silêncio, logo quebrado pela apresentação da próxima obra.
- Trata-se de uma história perversa de uma criança pobre e abandonada que encontra seu pai à beira da morte num hospital . O moribundo lhe conta um terrível segredo que só saberemos no final. Esse tipo de narrativa está inserida numa tradição européia de lágrimas, anuncia o cego.
Voltaram os ruídos esquisitos. Alguém arremata o conto com assovios de variadas intensidades. Algumas histórias serão contadas ou escritas na hora, em máquinas de escrever, no aposento dos fundos e na presença do comprador. Outras gravadas em disco num gramofone, em cabines envidraçadas na sala ao lado.
Diversas peças foram oferecidas naquela noite. Contos fantásticos- entre eles um que falava de um sujeito que tinha dificuldades para engolir coelhinhos. Narrativas de amor louco, até ficções de gênero alienígena como de faroeste participaram do pregão. No meio dessas “mil e uma noites portenhas”, me achei comprando uma história estranhíssima, sem pé nem cabeça: a de um jovem que em companhia de um outro, se aventura por uma cidade enevoada. Nesse caminhar acaba se transformando em personagem de um conto onde um homem cego de nome Borges leiloa histórias. O curioso é encontrar no fim dessa narrativa o começo dela, num círculo do qual não se sai, pelo menos em tese. Ela me foi contada por um senhor engravatado,de fala mansa. Não gravei, nem pedi por escrito. Confiei demais na minha memória. Ela começa assim: “As circunstâncias são imprecisas. Incerteza que indica ter acontecido um dia no meio da névoa que cobria a cidade de Buenos Aires…”.
3 comentários:
E vc ainda tem coragem de se desculpar por "re-postar" este conto?
Ora, é ótimo.
É o círculo da palavra pela palavra do outro. E que outro, Borges!
Valeu Tinê, brigadão pela gentileza!
bjs
eu tb li! as vezes acontece comigo aquilo que o Borges conta no 'livro de areia' que nunca mais abre na mesma página: e você lá querendo achá-la pois uma vez a viste e ela se perde numa areia infinita . é aterrorizante. zé
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