18.12.07

Conto Sujo de Natal


(Faz tempo que conto esta história, a cada ano acrescento uma coisinha ou outra. Não fiquem apreensivos, não a transformarei num romance. Tem alguma coisa nela que me comove e deixa muito triste, afinal as histórias de Natal acho que devem ser assim, meio amargas, senão não tem graça)
Eles se conheceram no Reveillon de 76. Ela garante que foi amor a primeira vista. O encontro aconteceu no calçadão de Copacabana. Ele sabia só algumas palavras em português. Era um gringo de meia idade, de olhos azuis,com a barba por fazer. Parecia Papa Hemingway, só que um pouco mais corpulento e bochechas rosadas.
Naquela noite de muitos fogos, ele suava em bicas e apesar de cheirar à manteiga derretida logo encantou a moça que alí foi, sem saber, atrás do abraço da multidão. Ela vivia sozinha e tinha chegado a pouco do interior, estava desempregada depois de tentar vários tipos de trabalho.Num deles, até tentaram abusar de sua boa vontade, afinal era bonita, apesar de um pouco mal tratada.
Toda de branco, então naquela noite das arábias, estava deslumbrante. O gringo siderou.
Nítido ainda em sua mente está o momento em que ele se aproximou, uma garrafa de “Sidra” na mão e perguntou alguma coisa que ela não conseguiu entender direito. Apontou para o céu, indicando que a culpa era da barulheira dos rojões. O que não consegue lembrar é como foram parar na pista de dança de uma boite com aquela luz estroboscópica que a deixou mareada. Ameaçou cair e foi aí que ele a amparou. Ato contínuo, puxou seu corpo como se fosse uma bailarina e a abraçou como se fosse um urso. Ele exalava um cheiro de manteiga, mas isso não a incomodou. Do beijo ela lembra que foi demorado. Saíram no meio da madrugada num Jaguar para a Barra, um bairro que estava começando a crescer nessa época. A noite estava linda, propícia para começar um grande romance. Chegaram a um condomínio de luxo,num apartamento todo mobiliado. Ela reparou que os móveis eram esquisitos, desiguais. Pareciam pertencer a um outro tempo. Em todo o ambiente havia uma espécie de inautenticidade que ela, de espírito simples só sentiu com um certo estranho encanto. Mas como ele era gente boa e carinhoso e ela pobrezinha, não se incomodou inclusive com o fato de que nos porta retratos que ficavam em cima de uma falsa lareira só exibiam fotografias recortadas de revistas estrangeiras, algumas inclusive com paisagens alpinas...
Viveram felizes. Ele fazia muitas viagens , falava pouco, mas era gentil. Sempre trazia muitos presentes. Roupas exóticas, bibelôs, sapatos, lingeries... Ao telefone era sempre lacônico, ou se comunicava em línguas que ela não entendia. Parecia um negociante ou coisa parecida. A moça com o tempo foi se ajeitando, pintou o cabelo de louro, fez uns cursos inclusive de inglês, … Em agosto ele começou a mostrar sinais que ela não conseguia compreender. Parecia apreensivo. Tinha uns tiques nervosos, como remexer o pescoço como aqueles lutadores quando entram no ringue. No dia 21 chegou um pacote. O homem trancou-se no quarto por horas.Depois saiu com uma mala e disse que iria viajar para São Paulo. Ela não perguntou nada. No dia 22 ela aproveitou a sua ausência para encontrar com umas amigas. Quando voltou, tarde da noite o encontrou dormindo. Ficou feliz porque ele tinha voltado, nem se incomodou com seu ronco ruidoso. Não sabia porque, mas sempre tinha essa sensação de que um dia ele não voltaria. Na manhã seguinte , ele acordou cedo, foi a banca de jornais e voltou com vários. Ela passou os olhos por um deles e lá estava estampada uma notícia ruim. Um líder da oposição tinha morrido num acidente na via Dutra. A vida seguiu sem muitas alterações até numa
noite do início de dezembro ele disse que iria sair para tomar um ar. Ela aproveitou e foi com algumas amigas a uma boite, de repente sentiu-se muito triste,sozinha, pediu uísque, misturou com vinho, se embebedou. Na volta,trôpega, foi barrada na portaria do condomínio. O porteiro disse que não a conhecia. Berrou com ele, afirmou que morava lá e que não devia dar explicações a ninguém.
Depois de muita confusão, o empregado permitiu que ela fosse até o apartamento acompanhada de um segurança. Quem sabe, assim aquela maluca bêbada e encrenqueira iria embora, depois de verificar que aquele lugar não era o dela. Ela tentou abrir a porta e percebeu que a chave não entrava. Era quase de manhã quando chegou o chaveiro do condomínio que rapidamente abriu a porta e surpresa: O apartamento estava vazio. Só um envelope no chão. Ela apanhou o envelope, estava escrito Happy Christmas, mais nada. Começou a chorar… De volta à portaria perguntou o que havia acontecido, afinal que mundo era aquele em que numa hora você mora num lugar na outra tudo some? O porteiro garantiu que aquele apartamento estava interditado há alguns meses, questão de espólio coisa complicada, de família grande ….. Ela estava tonta, imobilizada, não conseguiu dizer mais nada. Algo nela ainda era daquela menina que sempre aceitou a vida e suas determinações cruéis. Foi aí que ela caiu em si. As coisas foram se encaixando, os porta retratos com recortes de revistas aqueles móveis estranhos e outras esquisitices do comportamento dele, como o fato de sempre repetir para ela ser uma boa menina e sua forma de rir,o Ho Ho Ho!…Sem dúvida, aquele homem era Papai Noel em pessoa. Só podia ser! E pelo que ela sabia papai Noel não existia, daí o desencanto, o fim de todo o seu sonho…
Pelo menos foi isso que ela contou para um estranho num bar de tipo americano lá de Botafogo, onde rolava uma festa de Natal dos desgarrados. Era um homem interessante, estava de terno e gravata e o fato de ser dentuço não atrapalhava em nada, ligeiramente engraçado. Depois de dois uísques ela começou a achar que aquele detalhe anatômico tinha lá o seu charme. Eles trocaram confidências sobre suas solidões. Ela com a história de sua família no interior do Brasil e ele com a de homem separado. Falou que sua mulher o tinha deixado por um jogador de futebol e no mais, não quis adiantar detalhes. Perguntou se queria cear com ele. Foram para um apart-hotel do Leblon. Ela se espantou quando viu que os cômodos estavam cheios de ovos de chocolate. Ele se desdobrou para convencê-la que ele não era o Coelhinho da Páscoa e sim um empresário mal sucedido que tinha apostado tudo no chocolate amargo e agora esperava ansioso a próxima Pascoa para tentar “desovar” o apê…Foram felizes até aparecer o Saci Pererê, mas aí é outra história.

2 comentários:

TS disse...

A moça tem um pé no outro lado do espelho... isto não é ruim, desde que ela divirta-se com sua fantasia e saiba sair dele.

Gostei da idéia de modificar o texto a cada ano... mantendo-se como um mesmo conto.

LIBERATI disse...

Esse conto me lembra aquele filme baseado no texto Paul Auster, se não me engano acho que o título é "Smoke", um filme em que os caras fumam - o cenário é uma tabacaria, cujo dono é Harvey Keithel (é assim que se escreve?)Vale a pena ver, num momento do filme rolam umas histórias de Natal.
bjs