18.1.08

Crônica da Tinê - Acronia


Acronia
Dias sob ameaça de chuva e nada. Bastou a decisão de ir a campo e caiu um pé dágua com ventania, daquela que não adianta proteger a mochila no peito, os grossos pingos invadem até uma costura dupla. Saí de casa sem almoçar e nem guarda-chuva levei, uma droga. Ao menos pelo caminho tomei dois copos de suco de laranja e no farnel havia pão de aveia recheado com sardinha, maçã e cenoura. Ir a campo, para mim, significa andar a pé dentro de um itinerário flexível em região predeterminada, com a possibilidade de pegar atalhos, subir ou descer, direita ou esquerda, com sorte encontrar um conhecido na esquina que dê dicas e possa me levar mais longe ou, simplesmente, fazer companhia para ir a certos lugares que sozinha não me aventuraria, até arrisco a levantar o polegar e descolar uma carona na estrada para poupar meus pés, seja carreta de Vitória da Conquista ou carroça de boi da fazenda do 'nhô' Jonas, tanto faz, não tenho frescuras. Desde que, claro, o alguém inesperado não seja tala-larga para desviar meu testemunho ocular da paisagem. Não sei como pessoas conseguem fazer trilha com a língua solta, como se achassem o footing algo enfadonho e daí o fôlego extra para repassar as manchetes do dia, ou anunciar as fofocas sociais. Tenho uma amiga que parece um jornal ambulante em todas as faixas sonoras, ainda exige respostas às questões comezinhas quando estou com os olhos pendurados nos varais de roupas coloridas das casinhas perdidas no fundo do vale. Quando ela telefona - vamos caminhar? - eu digo que nossos ritmos cardíacos são incompatíveis. Ando em silêncio, fones no ouvido só para barrar gente chata ou motoqueiros universitários na carreira dos atrasados, nada de musiqueta a interferir no chamamento das aves, naquele delicioso assobio entre as viuvinhas em vôo rasante, no relincho dos cavalos, no som lamentoso das rodas de madeira, não que neste momento eu esteja no campo, não, mas certos sons de lá ecoam de árvore em muro até chegar ao centro urbano. Como ironia, estava de óculos escuros quando saiu um solzinho, pensei, vou até a casa velha que eles dizem ser pintada de marrom que para mim é vermelho "crimson" - guardei o nome só por causa da caixa de aquarela inglesa -, em verdade, a casa tem cor de cerâmica suja de fuligem, trancada há sei lá quantos anos, o projeto de transformá-la em centro de cultura engavetado, desconheço o motivo, o prédio oferece espaço para cinemateca, teatro, exposições, biblioteca, dizem que os donos não acordam entre si sobre o destino da herança, a ponto de uma professora animadíssima - na época, diretora do curso de comunicação local - largar tudo em definitivo e retornar aos seus vídeos na capital belorozontina, sem sentir saudades. Mas a algumas quadras dali instalaram um shopping popular no antigo Hotel Suisso, na grafia original. Continuando, perto da Vila Hott, passei pela Vila Agapito, consegui ir à metade da ponte Cel. Silvestre Ribeiro, aqui quase toda rua ou ponte tem nome de coronel ou padre - por que será? êta, pergunta sonsa! -, de onde podia fotografar o leito baixo do rio devido à estiagem - chuva a valer é no mês de janeiro -, os canos de pvc a pespontar as margens, o despejo contínuo das águas domésticas nas águas ribeiras em marrom-doce-de-leite saturado, nem penso em aludir pescarias ou banhos divertidos da molecada, é hepatite, na certa. Portanto, meus leitores sabáticos, por motivos meteorológicos, por falta de agasalho, bateria descarregada, encharcada, cabelos embaraçados cheios de folhas nesta Daphne perdida a correr pela floresta com a promessa de retomar o tema dos canos brancos sobre o rio em outra página, hoje não haverá crônica.
(Tinê Soares - 15/1/2008 - 18:20:42)

5 comentários:

Unknown disse...

Lembra da minha voz? Continua a mesma, mas os meus cabelos...

Bjuss

Monica

Edgar Hofmann disse...

Pensei na mesma fala...

TS disse...

Queridos "piuma" e "rio", meus cabelos estão mais compridos... a cinturinha desenhada pelo Liberati é que se perdeu ali pelos anos 90, não consigo achar de jeito nenhum, nem calada.

:)))

bjj para "a" e para "o".

Beijinhos especiais pro Bruno, dono deste pedaço.

LIBERATI disse...

Obrigadão Tinê,sua colaboração só honra este blogue.
bjs

Anônimo disse...

já é crônica. e bela. você fugindo na chuva e virando árvore de louro (é o início das Metamorfoses de Ovídio, Ediouro): o louro da vitória, na fuga ao Sol. O trabalho de campo é o complemento e o suplemento do trabalho teórico em qq matéria; é a Praxis mesma diante da filosofia de gabinete: uma revolução. Trabalho de campo é o trabalho todo. zé