22.2.08

Crônica da Tinê - Tuareg


Recordo uma festa familiar nos anos 80. No rebuliço doméstico, abriram um presente que era um enorme cartaz de Fernando Collor, em pé, de olhos fechados, ligeiramente reclinado, um punho na testa e outro às costas. Ninguém entendeu. Tuareg, num transe repentino, se colocou no centro da sala em igual postura do retratado e lentamente foi girando, ora para um lado, ora para outro, em cadência típica de terreiro. Ela girava compenetrada, até que as perguntas recriminatórias se transformaram em risos e seus giros foram aumentando. Alguém percebeu a provocação e diminuiu a luz. Uma crítica velada a um dos convidados. Pensei naquele momento em tocar um elepê de Mory Kanté - mas já estavam todos às gargalhadas, e Tuareg estirada ao chão, tal uma pomba exausta.

Um dia ganhei de Tuareg uma fita cassete - alguém ainda sabe o que é isso? - com a cópia de “Carmem”, a trilha sonora do filme americano inspirada na ópera homônima de Bizet. Na época, só as emissoras de rádio tinham equipamento para copiar em fita e eu precisava devolver o disco emprestado. Radiante, fui ao toca-fitas. A estonteante abertura virara uma banda de procissão. A vozes intercaladas daquele bar de afros foram substituídas por uma cantilena de enterrar toureiro vencido. Decepcionada, fui reclamar e Tuareg não perdeu o rebolado - É o seguinte, o aparelho na rádio não toca na mesma rotação da bolacha, então o jeito é você imaginar Cindy Lou e Joe em câmera lenta, não faça essa cara, a cigana vai morrer em qualquer ‘r.p.m.’.

Noutra ocasião, diante de amigos, ela foi impiedosa: imitou a cena em que fiquei entalada na catraca do metrô com sacolas de compras, fazendo soar alarmes, piscar luzes, disparar os seguranças, justo na hora engarrafada. Devo observar que eu não era gorda, apenas estava sem óculos e inseri na máquina a sanfona inteira de bilhetes como se fosse único. A performance dela incluía a mim, os guardas, os usuários na fila, os gestos das bilheteiras, todos os sons, menos as cores que acendiam e apagavam.

A última lembrança ao vivo foi em casa da irmã dela, onde me hospedara por uns dias. Ao contrário dos anfitriões, eu acordara no horário das galinhas. Fui preparar meu achocolatado. A cozinha não tinha porta e os ruídos foram inevitáveis. Para incomodar menos, decidi usar o microondas que ficava no alto de uma prateleira. De camisolão, ali parada, olhava para o alto, para o 'timer', de mãos postas junto ao peito. Este ritual se repetiu por dias. Eu me arrumava e saía em silêncio. Mais tarde, e alguns dias que se seguiram, onde quer que eu fosse tinha de ouvir gracejos de que com tanta santa disponível eu rezava para a Nossa Senhora do Microondas. Claro, só podia ter sido Tuareg, a sarcástica!

Quem nunca comeu doce, quando come se lambuza. Diz-se o mesmo de quem nunca brincou na neve. A prima que o diga, esta que aqui chamo de Tuareg, a julgar pelas centenas de fotos nevadas. Depois de muito rolar nas areias escaldantes cariocas e nas dunas nordestinas, hoje ela rola em neves de T. S. Elliot. Além de anjo-palhaça, ela é muito volúvel. Na primeira vez que saiu do Brasil foi para Portugal, voltou apaixonada e foi avisando a todos: vou mudar-me para lá, onde meu coração está! Depois repetiu o mesmo discurso amoroso com a Argentina. Agora não quer saber de mais nada, só dos ianques. Disse que desta vez fica para pesquisar, não duvido, porém creio que o estudo assistemático das viagens ‘coast to coast’ tem-lhe oferecido melhor currículo em assuntos gerais.

A primeira cena-americana de Tuareg veio de São Francisco. No sobe-desce ladeira, adorou o bairro Castro, onde há uma bandeira arco-íris fincada em cada esquina. Esfuziante de alegria, sem saudade do Rio ou do Maranhão, pegou uma daquelas bandeiras e girou no meio da rua a gritar pra todo mundo – I’m not gay! I’m not gay! – e se espantou de que ninguém deu bola, deram de ombros, e daí? alguém liga para o que é ou deixa de ser?, e ela achou isso o máximo. Eu não sei que bicho morde brasileiro que se manda, sem querer voltar. Seja de Nevada ou de Baden-Baden. É como um rito de iniciação global. Só sei que um dia o deslumbre cederá lugar ao feijão com arroz e farinha d’água. Um dia este anjo-borboleta sulcado no gelo vai voltar, ao menos para eu lhe cobrar - Cadê a minha cópia de “Carmem” na rotação certa? Nem fado, nem tango, oh yeah!
[Tinê Soares - 20/2/08 - 22:57:04]
N.R: A arte sobre a foto também é de Tinê

2 comentários:

Anônimo disse...

no ponto em que voce narrava: "a cozinha não tinha porta..." algumas boas lembranças me vieram a mente, e eu ja esperava alguma menção ao fogão a lenha, mas pra minha surpresa, surgiu um microondas, rerere.

ze disse...

ela vaga, pelos desertos da vida, a nômade itinerante, busca e procura algo que com certeza encontrará pois 'àquela que procura, achará; a que bate, será aberto e à que pede, será dado.' nossa senhora dos evangelhos.