31.3.08

As Palavras e as Coisas


(Esta croniqueta eu publiquei num outro tempo e faz uma justa homenagem aos amigos que me ajudaram e ajudam a levar adiante os meus cometimentos lítero-traçantes)
Acredito que as palavras são fonte de permanente
mistério, fora o fato de que geram os famosos mal
entendidos, que têm sido tão mal interpretados,
coitados! Se não fossem eles, o que seriam dos
boleros, da dor-de-cotovelo e da dor-de-corno por
supuesto? Palavras existem para nomear as coisas,
expressar sentimentos e, na maior parte das vezes,
dizer bobagens. O principal problema é essa mania de
interpretação. Não dos boleros, mas do que se diz.


Creio que uma outra fonte de confusão está na própria
mecânica do ato de falar. As palavras são antes de
mais nada sons (grunhidos?), que uma vez emitidos
surfam em ondas e vibram no ar até chegar aos ouvidos
nem sempre atentos. Vai daí que uma coisa dita, mesmo
que seja bem dita, pode ser entendida de forma mal
dita (maldita?) Nesse entroncamento se situa um rico
manancial de coisas ouvidas erroneamente, que ao meu
ver (ouvir) constituem um sinal da extraordinária
criatividade do ser humano - e que o diferencia do
papagaio e de alguns cachorros amestrados.


No Brasil, isso é de uma riqueza sem fim. Para
começar, ouça (veja) o caso de uma menina
recém-entrada na universidade que chegou em casa toda
pimpona e disse ao pai: "Meu professor falou de um
novo autor hoje, um tal de Maiquéu Fucô" (ela se
referia a Michel Foucault, claro, e produziu um riso
hilário no pai). Nesse caso ela ouviu e leu o
professor escrever Michel (Mixéu) , mas seu
inconsciente moldado por Disney e a família Jackson a
fez registrar o nome Michael (Maiquéu).


Ouvir palavras e repeti-las de forma errada pode
acontecer com todo mundo. Solange, a ex-famosa
participante de um irreality-show que hoje é uma das atrações do programa Pânico é uma mestra nessa alteração
de todos os sentidos das palavras. O seu "Uiarniuôr,
Uiuarnsilver.", que virou CD e toca em baile funk por
aí, na verdade queria dizer: "We are the world, we are
the children.", da música cantada por vários artistas,
entre eles o Michael Jackson, para uma campanha em
favor dos pobres da África, se não me engano. Não é à
toa que o pessoal já cantava "Uh! Tererê!", em vez de
"Hoop there it is", da música Space Jam, do grupo Quad
City DJ's.


É claro que nesse negócio do funk não é preciso muito
sentido, embora tenha bastante. Basta produzir um
balanço que permita o sacolejo, que está tudo bem. Mas
existe um movimento de alteração do dito que vive
transformando palavras, que passam a adquirir
novíssimos sentidos. Sem dúvida, fariam Michel
Foucault morrer de rir antes de a dama sinistra passar
o cerol nele (nossa crônica, por sinal, leva o título
de um de seus livros). Tocando as maracas da
interpretação, creio que ele curtiria muito essa
capacidade de adaptacão do nosso povo, sua
criatividade alucinada.

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Há algum tempo venho fazendo (com o auxílio luxuoso de
uma psicanalista amiga, Dra. Ilma), além da
colaboração de sociólogos, jornalistas, historiadores, designers
e livreiros ilustres, tais como Rosa, Flávia, Ruth,Fefê
Reginaldo e Chico, uma pequena coletânea de palavras
que são usadas fora e às vezes muito dentro do
contexto. Abaixo vão alguns exemplos:


1) O menino ia atravessando a rua quando o caminhão
vasculhante quase atropelou o desinfeliz.


2) O emprego dele é muito bom, tem até adicionário
noturno.


3) A febre baixou, mas só quando usou um sucusitório.


4) A injeção foi bem no glúten dela.


5) O requerimento do advogado foi aleijado do
processo.


6) Ela teve condolências do rapaz.


7) A última vez que vi o velho ele estava bem nítido,
(esta já citada por um outro cronista, mas juro que
descobrimos antes).


8) O pobre só apresentava uns sinais de
estereosclerose.


9) Aí, bateram um elétrico, mas já era tarde e o
coitado tinha tido um ABC (em vez de AVC).


10) Tive que fazer um xerox vice-versa do atestado de
óbito.


11) O jornal diz que lá no Iraque tem muito
frango-atirador.


12) E aquela que foi no motel e só ficou usando a
banheira de vidro massagem?


13) Ainda bem que todo o gasto da viagem foi
debilitado na conta da firma.


14) O menino ficou tão contente depois que ganhou um
videogay .


15) Nessas novelas, agora, estão com essa mania de
botar mulheres mésblicas. É um tal de mesbla se
agarrando...


16) Com esse hábito de de não usar fio dental eu
fiquei com o gengibre inflamado.

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Uma idéia maluca me veio à cabeça cheia de jericos, a de fazer uma dicionário desse novo vocabulário,incluindo nomes próprios que mudaram devido ao
entendimento diferenciado do escrivão na hora do
“resistro". Mas, na última hora fui vencido pelo "princípio de realidade" que nestes tempos pós-freudianos se chama mercado.
E, para finalizar, uma que é um fenômeno ainda
a decifrar. Trata-se de um cartaz de beira de estrada
onde se verifica uma nova forma no uso do pronome. Lá
está escrito: "Vende peixe-se". Nesse caso, sem
dúvida, trata-se de uma revolução linguística.

8 comentários:

TS disse...

Adoro esta!
Da última vez que li prá cá conheci um monte de "Uachinton".

É como o "Daumbailou".

Les Mots et les Choses: o som é mais bonito em francês, temos que admitir.

Pelo seu incentivo, tô "me peixando" aos chatos!

Gde abr da T.

nota: gostei da expresso "lítero-traçante".

ze disse...

'tá muito engraçado. é fonte para os humoristas. as crianças de prata. Este livro do Foucault fala do nascimento de uma forma de pensar o mundo, de uma episteme. É justamente na época que queimaram os Incendidos e positivaram racional e mecanicamente o mundo. Perdeu o mito e a intuição a episteme oficial da ciência. E incendiaram como sempre desde sempre os livros e os autores.

ze disse...

Minha contribuição: a vida é perna (a vida eterna).

Anônimo disse...

E tem as clássicas e célebres do Vicente Mateus (matar dois coelhos com uma caixa d'água só, faca de dois legumes etc). Parece que o Sílvio Mensalão Pereira também perpetrava algumas de alto "coturno".
Guardei uma nota de jornal com as contribuições do companheiro pra te mandar, mas não estou encontrando.

ze disse...

mais contribuição: 'este cachorro é um pulgatório' - de verdade.

a 'faca de dois legumes' é do legume que fala e do legume que escuta.

LIBERATI disse...

Valeu Tinê, o som é o sentido.
bjs

LIBERATI disse...

Caro Zé, esse livro de Foucault nasceu de uma grande gargalhada quando ele leu um texto de que Borges falava de uns uns bichos imaginários- F. achou engraçado e começou a pensar na relação das coisas com as palavras e como todo bom pensador francês, pensou tanto que escreveu um livro e isso virou moda. O diabo é que ele escreve bem pra caramba!
Abraços

LIBERATI disse...

Querida Rosa, aguardo a contribuição para o "adicionário noturno"
bjs