28.3.08

Crônica da Tinê - Fetiche


O pequeno par de brincos portugueses, ouro com rubi, fora dado para a outra. Aquilo foi um murro em peito metafórico. Muito antes de a outra nascer, quantas vezes a menina abriu a gaveta superior da cômoda, a caixinha forrada de algodão dentro de uma caixa maior entre outras, na ponta dos pés ia experimentar os brincos da mãe.

A menina cresceu. Dezenas de brincos desfilaram por suas orelhas. Da singela pérola ao 'lustre de sala' de meio-palmo, metal nobre ou cobre de feira hippie. Teve um que veio do Araguaia: fios de juta com penas coloridas e em dia de festa à fantasia ela berrava "Quem pegou o meu kuarup?"

Houve um pingente engolido com tarraxa e tudo por um carinha afogueado. Não fez questão de tê-los de volta: a minúscula pedra e o fervente rapaz. Os preferidos sumiam depois de algum tempo. Não os paqueras ao pé do ouvido, os brincos. Nunca o par: sempre um, o que guardava como estúpida lembrança de uma época, de um lugar, de um alguém.

Veio a moda do brinco único - o primeiro que ela usou foi um peixe com escamas que se moviam quando caminhava - mas não curtia, o pescoço comprido destacava o lóbulo nu, sentia a cabeça torta. Dois peixes daqueles se contorcendo nas orelhas seriam um exagero. Então o peixe ondulante foi parar numa gargantilha como a secar ao sol.

Um dia descobriu por acaso que um ex colecionava brincos. Perdidos? Troféus? Nem era ele um joalheiro, bijuteiro ou cantor de rock. Um dom Juan surrupiador, talvez. Provocadora, ela comprou-lhe um par de microesferas douradas e mandou com um cartão "Estes são exclusivamente seus. Aqueles, nem tanto, nem tanto." Aí ele sumiu.

Cautelosa, o par favorito era guardado no lado direito do armário, camuflado entre objetos, como a luva de organdi onde escondia no avesso de cada dedo presilhas de strasse para os cabelos. Alguém foi lá, abriu a gaveta, a caixa das caixinhas, o papel de seda, e adeus aos favoritos! Quando chorou foi criticada - quem mandou ir à praia, ao acampamento, sassaricar por aí com os brincos? Não. Impossível. Aquela jóia era para ocasiões de pompa, não para vida mundana. Para se aborrecer menos, deixou passar o fato, comprou dúzias de lindos brincos vagabundos.

Um dia sob a ducha, o brinco de ônix desceu pelo ralo. Estátua ensaboada, rosto crispado, uma mão na orelha e a outra no rodamoinho, parecia propaganda alemã do Kamillen-Kräuter. Mais um para a coleção dos solitários! Teve a cena do sujeito na oficina que resolveu entrar na moda e, ali mesmo, para horror das mulheres presentes, deitou a cabeça na bancada, pediu a um colega para martelar e fazer o furo com formão: ele exibiu o brinco, ensanguentado e feliz.

Quando a viúva Giovanni morreu, queria algo dela como lembrança. No antigo quarto, os olhos passearam até uma caixa laqueada sobre a penteadeira. Diante do baú os dedos da pirata destamparam o tesouro, correntes broches pulseiras emboladas, um brilho veio do fundo das quinquilharias: dois triângulos de cristal dos anos trinta. Frente ao espelho, colocou-os nas orelhas e apreciou o efeito, sentiu-se a própria modelo de Mucha.

A jovem senhora vive em tempos de piercing e tatuagem, da bunda ao umbigo, da orelha ao dedão do pé, da ponta da língua à ponta de sei lá o quê, mas persistem os tradicionais requintes tribais: furos na carne, dois apêndices, um de cada lado da cabeça. Brinco adorna e valoriza a face. É investimento. Sobretudo se vier de um ourives talentoso com ouro de bom peso. Também conta histórias. Mas, se for presentear, cuidado. Esculturas-móbiles ficam ótimas no teto. E nem todos são da tribo dos botocudos.

Tinê Soares – [27/3/2008 - 18:14:29]
A foto também é da Tinê.

3 comentários:

TS disse...

Lá no Eu Canto de Olho estes brincos ficaram melhores...
(a foto que ia entrar aqui foi censurada)
Liberati, comece bem a semana. Abração.

LIBERATI disse...

Abração Tinê, boa semana. A crônica está cada vez melhor.
bjs
Bruno

ze disse...

Brincos de pele de crocodilo ou jacaré, Krishna, o Deus usava. Brincos de pele de crocodilo são sagrados. Minha orelha única furada um namorado de irmã furou com agulha e rolha. Deve estar fechado o furo posto que brinco não uso. Mas Krishna o Deus, usava.