4.3.08

"Noiteceu" é notícia - Luizinho Lopes dá o tom da nova Música Popular Brasileira


A palavra dá o tom da nova Música Popular Brasileira
(Jorge Sanglard é um jornalista brasileiro que agita lá nas Minas Gerais. Pesquisou e organizou o material para a antologia "Poesia em movimento". Aqui ele escreve uma bela matéria falando de um fenômeno novo na área da nossa música que tem que ser ouvido .- A matéria saiu ontem no caderno "das Artes das Letras" do jornal O Primeiro de Janeiro, do Porto- Portugal.)
A valorização da palavra, impregnada de sentidos, sutilezas e imagens poéticas, é a senha para desvendar a trajetória do compositor mineiro Luizinho Lopes e mergulhar em seu terceiro disco independente "Noiteceu", um verdadeiro achado musical e um passeio poético denso e instigante. Compositor, violonista e cantor, Luizinho Lopes é um dos mais criativos e inventivos novos talentos da Música Popular Brasileira e busca na renovação a força para articular a sua obra. Tendo como parceiros dois premiados escritores da literatura brasileira contemporânea, Luiz Ruffato e Iacyr Anderson Freitas, além do jornalista e escritor paulistano Zé Edu Camargo e da compositora e cantora carioca Luhli, Luizinho Lopes injeta sangue novo na MPB e ajuda a revigorar a música mineira.
Engenheiro por formação, com pós-graduação em Cinema Documentário, pela Fundação Getúlio Vargas, e auditor fiscal do Estado de Minas Gerais, trabalhando no Rio de Janeiro, é na música e no exercício da palavra que Luizinho Lopes encontra inspiração para enfrentar o cotidiano de idas e vindas semanais entre Minas e o Rio e para dar vazão à criatividade. A solidão do ato de compor permeia sua veia poética e está impregnada em toda sua música.
Ao lançar mão de dois versos de Iacyr Anderson Freitas, o compositor constrói "A sola do palato", uma poderosa vertente musical, e dá a pista para a compreensão do resto do CD. O arranjo é do maestro e pianista Roberto Lazzarini, também parceiro na música, destacando o acordeom do iluminado Toninho Ferragutti: "Palavras como frutos proibidos / palavras com vontade de não ser de não dizer / palavras com desejo de silêncio / palavras que têm medo de pisar na língua / com a sola do palato / com a sola do palato /.../ palavra camuflada na sentença / palavra que não sabe vir à tona ou se esconder / palavra sitiada por um mote / até o instante em que o poeta vira cobra e dá o bote / com a sola do palato / com a sola do palato".
A partir do poema "No retrato", também de Iacyr, Luizinho Lopes recriou, com malícia e ironia, o ambiente familiar de preparação para uma foto: "Toda a família se espreme / no retrato ao lado do oratório / família toda espremida / comungando a breve aura do flash". Cantada pelo Coral da Universidade Federal de Juiz de Fora, com arranjo e regência do maestro André Pires, a composição é um dos trunfos da parceria Luizinho e Iacyr. Toda a irreverência e a picardia da letra foram incorporadas à interpretação do Coral da UFJF com leveza e despojamento.
Já a parceria com Luiz Ruffato na canção "Em mim" é uma das provas da força da palavra na música mineira: "E a solidão que ora sinto / abismos abissais / não é montanha após montanha / é algo mais / céu sobre as minas / mãos sobre as minhas /.../ talvez não entenda / a lenda silenciosa em mim / não é costume após costume / é muito mais / não está em mim só / está em mim / em mim / em mim / em mim / nas gerais". Autêntico mergulho nas profundezas das coisas de Minas Gerais, a canção é uma obra-prima e um desafio aos que insistem em dizer que não há nada de novo na MPB. Há sim. E estas parcerias atestam o vigor da nova música brasileira forjada neste início de século XXI.
Assim como "Queda m'água", parceria de puro lirismo entre Luizinho Lopes e Zé Edu Camargo, um passeio de uma lágrima do olho à boca: "Represa que se forma / no olho-dágua / transborda em rio-lágrima / despenca / em queda m'água /.../ se vai no sorvedouro da minha boca / e volta em mim / e em mim a dor estanca". A participação vocal de Tânia Bicalho é comovente nesta faixa. Outro exemplo de parceria vigorosa é a canção "Ladrão d'almas", onde Luizinho Lopes e Luhli também tratam do momento mágico do retrato e cantam juntos: "A janela do clique / flash lambe num segundo a cena / a imagem feito um dique / faz o instante se conter pra sempre /.../ O teu riso aprisiono / tenho medo eterno de perder-te / eu te clico, aprisiono / pelo medo eterno de perder-te / ladrão d'almas eu te rondo / tenho medo eterno de perder-te / ladrão d'almas eu te roubo / pelo medo eterno de perder-te".
As demais 10 composições são todas assinadas por Luizinho Lopes e aí o que se vê é um músico com a criatividade à flor da pele e um letrista de mão cheia. Novamente, a palavra se afirma e o compositor consegue articular uma inusitada unidade musical em meio à diversidade de ritmos e nuances que explora no CD. "Não se deve duvidar de uma ilusão", adverte o autor numa das faixas do disco: "Ela é tão distante e bela quanto estrela / quando me aproximo dela ela já foi / pele de mercúrio escorre pelas mãos / ela é uma mina / de explorar o ouro da canção / tudo nela é passageiro como tem que ser pra ser paixão". E é exatamente ao explorar o ouro de cada canção que Luizinho Lopes vai se insinuando como um farol que brilha no horizonte da música brasileira contemporânea. Em "Lume", interpretada magistralmente pelo cantor Renato Braz, o compositor extrai a essência da solidão necessária para que a palavra se torne verso, se torne uma luz: "Não olhe agora não / que ele acabou de chegar / olhe não / não sei se ele já viu / mas se ele não viu / tá fingindo tão bem / não tente se atirar / um gesto brusco / e ele pode escapar / um verso é sempre assim / se está chegando / é bom nem se mexer / armadilha de guerra / pro poema cair / estratégia é o silêncio / de fazer neném dormir / a solidão é cena / pra tatear uns versos / na escuridão expostos / eu sei o que é ser cego /.../ há dias que eu recobro / a lucidez nefasta / que afasta a mão do lápis / desterra a minha escrita / quando o poeta avista / de seu silêncio uns versos / empunha a lapiseira / finca na folha branca". O intimismo da canção é um convite à reflexão.
E, também poeticamente, Luizinho Lopes se revela por inteiro como um engenheiro construtor de canções em "Contando estrelas": "Um Sherlock irá cansar / desvendar amor em ti / só Quixote / e quem sabe sonhar um pouco / só um louco / guarda uma paixão no estoque / farejar amor em ti / infinito é por aí / tuas pernas / lindas curvas paralelas / são no ponto / em que se encontram / inda mais belas / conta as estrelas / que eu conto os buracos da lua / beija na ponta dos pés / que eu não quero acordar já". Aqui, a viola de 10 cordas de Fabrício Conde pontua a música ao lado do saxofone soprano de Max Paulo. Mais um momento intimista e uma das letras mais inventivas do compositor.
Em "Dinastia dos escombros", o silêncio e a solidão do processo criativo tornam a marcar presença e a desafiar: "Onde vou deixar meu beijo, amor? / quede tua boca? sumiu... / não sei pendurar desejos no ar / onde seu varal foi parar? /.../ saia já daqui que eu vou pros ares / de tanto me silenciar / meu corpo não comporta mais falares / acho que vou estourar". A participação vocal de Júlia Borges, ao lado Luizinho Lopes, dá um toque de leveza à densidade da canção.
O vocalise de Tânia Bicalho divide com o autor a interpretação da faixa "A sós" e, juntos, deixam claro o plano de vôo do compositor: "Desbravar o céu da boca / pra depois cantar / retirar a voz da toca / sem temer voar". Aqui, Luizinho deflagra, pouco a pouco, um ambiente onde a escuridão predomina, repleta de fantasmas e feras que incomodam incessantemente para, no final, numa só frase, com o fio sutil de lâmina musical cortar: "Não, não é fácil te esquecer". É o amor que nunca passa, com anatomia de um monstro que não se vai, não se deixa ser expulso. Uma cicatriz cerzida na parede da memória, solitária prisão.
Em "Expiação" o autor explicita ainda mais este tema: "O pavor de esbarrar / nalgum velho fantasma / é pavor que não passa / embaraça no tempo / meu amor, por favor, / me perdoe a palavra / sei de um verbo fantasma / que se chama partir / não feche os olhos / barco fica sem mar / onde meus olhos / vão poder navegar?". E, em "Casca de nós", revela a força da dualidade: "Casca de noz guarda o fruto / casca de nós guarda o medo /.../ esteja certa o que sinto / lumia mais que um lampejo / paira entre nós o atrito / entre o real e o desejo / seu beijo faz minha língua aquaplanar / se de carne e osso você fosse / eu beliscaria esteja certa / segue negando a existência / a sua ausência é tão concreta". O arranjo, de Roberto Lazzarini e Bré, expõe com ritmos ininterruptos o minimalismo da canção, dando trato à madeira para incursões da guitarra "picapau" de Salim.
O intimismo dá o tom de "Areia", composição dedicada ao saudoso seu Luiz, pai de Luizinho Lopes, e exprime o vazio da perda definitiva preenchendo a lembrança: "Areia / que vaza do deserto / e vem pro coração / aqui / tá tudo quieto / você se foi / eu não sei: / por que passagem? / ah! como dói / ter só uma bela / de uma imagem / na memória".
Inspirado pela essência das noites descritas por João Guimarães Rosa, que sintetizou: "Sertão: é dentro da gente", Luizinho Lopes faz da noite o seu sertão, a sua alma. E constrói uma ponte entre a primeira e a última música do disco. "Anoiteceu", que abre o disco, é de uma qualidade de noite-neblina sem costura, inteiriça peça pura: "Anoiteceu no sertão / não dá pra ver / só se a lua encher / o que é que eu vou fazer / na escuridão? / só se me der a mão". Em "Noiteceu", que fecha o CD, retoma o tema com uma escuridão ainda mais densa: "Pai essa noite não vai mais passar / nuvens parecem soldadas no céu / o que me sugere? / estranha intempérie / noiteceu sem luar".
Toda a diversidade musical estabelecida pelo compositor no disco teve a cumplicidade de instrumentistas do primeiro time no Brasil: Roberto Lazzarini, no piano e arranjos; Bré, em toda a percussão e na criação de sonoridades noturnas; Toninho Ferragutti, no acordeom; Sizão Machado, no contrabaixo acústico; Paulo Garfunkel, na flauta; Maria Clara Valle, no violoncelo; Daniel Drummond, na guitarra; Fabrício Conde, mestre contemporâneo da viola de 10 cordas; Luiz Cláudio Faria, no flugelhorn; Cássio Poleto, no violino; Salim, na guitarra; Cazé, no bandolim; Neli Aquino, na flauta; e Carlos Henrique Pereira (Kain), no violão de aço, produção e mixagem. Além da participação vocal de Andréa Gomes.
O CD tem o selo da Funalfa Edições e foi gravado com recursos provenientes da Lei Municipal Murilo Mendes de Incentivo Cultural. E pode ser encontrado no site: www.nossamusica.com

2 comentários:

ze disse...

a photo da família como oratório, sobra de desde a Antiguidade quando as máscaras da família faziam este papel na entrada da casa: sobrou de uma cultura antiga, eu acho.

LIBERATI disse...

Você precisa ouvir este CD, é o máximo!
Abraços