12.4.08

Crônica da Tinê - Copos Marcados


Presenciei a discussão de um casal em torno da divisão de copos.
Não é folclore, também pode acontecer entre irmãos e primos. Mas um ex-casal em fase de ‘toma lá, dá cá’ oferece cenas patéticas: os copos são qualificados de acordo com a desqualificação do reclamado na proporção direta da ira do reclamante. Nem os trinta copos de requeijão com reprodução de pinturas brasileiras escaparam. Se ainda fossem Nas obras originais... com certeza a disputa teria sido mais acirrada e divertida.

Devia eu sentir pena de dois entes cujo amor original se resumiu a objetos a serem divididos à tapa? Quanto mais tempo juntos sob um teto comum, maior o arsenal para o bate-boca. É irresistível. Parece que os objetos criaram vida e se casaram à revelia dos donos, relutam em separar-se na cristaleira do litígio. Bom, antes quebrar pratos do que pôr os filhos, o cachorro, o gato e o curió na linha de fogo. Na Grécia, quebra-prato é voto de felicidade. Não importa a nacionalidade dos ex-pombinhos: quando capitulam parece que um passa a falar em grego com o outro. Ou birmanês, se forem gregos.

Objetos adquiridos ao longo da vida a dois revelam seu real valor na hora da separação e constituem longos capítulos em ordem alfabética. Alguns itens são fáceis.
--- Pode ficar com os copos azuis-dourados para uísque, eu não bebo e nem trago horda de amigos no fim de semana para encher a cara. Já os quadrados com design finlandês servem para o chá gelado, eu quero.
--- Sem essa, você também bebia e curtia os amigos! Fica com os finlandeses mas as canequinhas baianas para aguardente com a garrafa-alambique ficam comigo.
--- Nem pensar! Eram do meu bisavô. Aliás, devolva a garrafa de vidro em forma de mulher que você carregou...
--- Negativo! Sua tia me deu o jogo completo antes de nos casarmos, ela queria aquilo longe de casa. E a garrafa-mulher já havia sumido nas mãos de seu avô. Também quero as taças flutes de Amsterdã. Você tem as taças biseladas de sua mãe...
--- Não me leve na flauta! Sabe muito bem que as taças de champanhe estão desfalcadas por cinquenta anos de uso e empregadas mãos-de-fada. Só restou um terço...
--- Então fica também com aquelas redondas que foram de minha mãe, assim formam um jogo pós-moderno, ninguém vai notar a diferença nos desenhos e vão continuar a arrancar suspiros de suas amigas fúteis...
--- Francamente! Gosto muito de sua mãe, mas as dela não são autênticas, vieram de um brechó de rua... e minhas amigas são decoradoras de bom-gosto, algumas doutoradas em história da arte!

Ainda não tinha chegado a vez das licoreiras em bico-de-jaca quando um livro escondido entre os cristais caiu da prateleira. Ambos mudaram de expressão diante de “O Encontro Marcado” a esparramar pétalas de uma flor murcha, com as páginas ainda manchadas de lama por ter caído do colo da moça ao sair do carro do rapaz no dia chuvoso do “primeiro de nossas vidas”.

De repente, cansados de se acusarem através dos copos, ele fez o convite e ela aceitou.
Os dois nem pareciam que tinham discutido horas a fio, foram para o Bar Astoria. Ele pediu conhaque, ela, um simples suco de laranja... com vodka. Transparentes, riram à toa. Na saída, combinaram outro dia para separarem os discos, beijaram-se de boca fechada feito irmãos, e cada um tomou seu rumo para um novo encontro marcado.

Tinê Soares – [10/4/2008 - 11:14:35]
N.R- A ilustração também é da Tinê

10 comentários:

Anônimo disse...
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Anônimo disse...
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LIBERATI disse...

Querida Tinê, desculpe, mas tive que deletar dois comentários que não eram exatamente comentários, mas duas empresas querendo fazer publicidade no espaço do blogue. Não consigo entender o que esses caras ganham com isso? Por que não fazem um trabalho inteligente dentro da internet. Podem até envial e-mails oferecendo seus produtos, podem até ajudar a desenvolver os blogues , fazer promoções bacanas. Mas usam a burra política intrusa de se meter dentro do quadro de comentários. Juro pelo Buda, não consigo entender a política desses caras. Que coisa mais burra!
Bjs , sua crônica tá linda! E a ilustra também.

TS disse...

Liberati, esquenta cabeça, não.
Tem gente q confunde uma BOA propaganda c/ Spammers nem sempre isentos de perigo do tipo "clicou, caiu."

Obrigadona, boa semana, bjins.

Anônimo disse...

Desta vez, sem dúvida, v. realizou uma crônica tão "exata" do fim de uma relação. Os objetos adquiridos na vida em comum ou que vem junto a estas vidas, tomam significados enormes quando de uma separação. Eles estão ali na vida cotidiana. Muitas vezes, ignorados, esquecidos de seus significados e símbolos. Mas quando se trata da separação: o imaginário, as lembranças, o apego, a resistência em se desfazer daquilo que foi uma lembrança e a partir de então, será ainda mais forte, não é algo "banal". É a expressão de um sentimento, de um modo de vida que se vai para a construção de outra. Puxa... me lembro de um casal que até aquelas "bolinhas para lavar roupa na máquina" foram dividas: 3 para cada um... (rs - mas é verdade!). Agora quer saber do que me lembrei? Dolorido é "separar fotografias".... Beijos. Puxa! Como é que posso estar "perdendo" estas crônicas? Sorry! :)

TS disse...

ED, essa das "bolinhas p/ máq. de lavar"... só podia vir de um mineiro. Rssss.
Bjão.

Anônimo disse...

Adoro ler o que voce escreve. Acredite! Beijos (de boca fechada como primas). Maura

ze disse...

Coisa mais triste separar! Só acredito em relações eternas. Taças de prata que não quebram ao cair no chão - longe de cristal serem. Que a outra fique com tudo para nunca haver separação! Que pelo menos os inanimados objetos vivam 'felizes para sempre.'

Anônimo disse...

adorei o "não me leve na flauta"... isso pertence tambem ao repertorio de minha mãe.... rs. Sobre o "Encontro Marcado" se for da Editora Sabiá, haaa deve dar muita briga mesmo, pois tem um valor alto nos sebos por aí, rerere.

E mais, o Zé Rodrix tem uma canção que trata bem deste assunto: Devolve meus LPs... Quems sabe te mando a letra.

É, voce tratou bem de um momento nada bom. Abraço

Anônimo disse...

Ui, acho que a verdadeira barganha por detrás da discussão dos copos ou o que quer que seja é mesmo o afeto que se interrompe e o que cada um deixa de receber à raiz disso.