23.5.08

Crônica da Tinê - "Superstar"


Entrávamos no Cine Roxy em Copacabana, aboletados na turma do gargarejo (ou, como se dizia então, na posição "eram os deuses astronautas") para assistir a estréia. Na vigésima vez, quando o telão branco se abriu, já sabíamos toda a letra do musical de Lloyd-Webber, enquanto nossos pés batiam no ritmo de Caifás.
"Caiaphas said:
Jesus, you must realize the serious charges facing you. You say you're the Son of God in all your handouts, well, is it true?"
Hoje, ao ver os santinhos eletrônicos na caixa de correio, deduzo que os amigos remetentes me julgam meio perdida às portas do Inferno! Alighieri soube como ninguém usar sua verve poética para descrever as labaredas numa obra magnífica - A Divina Comédia - e, o mais curioso, os tomos Céu e Purgatório não têm a mesma pujança imaginária, não apelam com a mesma graça junto ao leitor. Não fossem os belos talhos-doces de Dührer para dar um visual bacana aos cantos, acho que os dois primeiros livros seriam dispensáveis. Numa explicação rasteira, eu diria: os bandidos são sempre mais interessantes que os mocinhos. O perfil da Queda traz inúmeras nuances: sentimentos, acertos, desejos, erros, dúvidas, buscas, ideias, ações, emoções, poder, aventuras que moldam a vida dos pobres mortais, uns mais que outros. Sidharta Gautama saiu de seu palácio superbom para "cair no mundo" - literalmente, quinhentas e treze vezes, dizem - para conhecer a Luz.

Não sei se Dante viveu como pedra no caminho ou como airosa borboleta, se fez uso da memória retro-inativa, ou se foi e voltou para contar, por mim nem precisava ir: ele criou seu cenário infernal espelhado na condição humana. Bastava circular atento pelas ruelas, sacristias e tabernas de seu tempo com um bloquinho na mão (ah, se ele dispusesse de uma filmadora!) e depois comparar os dados com sua própria existência (mentiras, negações e projeções inclusas) neste planeta de variadas paisagens (catástrofes naturais inclusas), habitadas por seres inteligentes tão caóticos que precisam desesperadamente acreditar em algo além e acima (ou abaixo) de si por não suportarem ser humanos e - como antídoto a esta precariedade - desejarem com ardor ser iguais Àquele.

Os proto-humanos colocavam suas figuras no fundo das cavernas. As Calimérias e os Phebos tinham lá seus favoritos do Olimpo, réplicas do mundo dos mortais com a vantagem de nunca morrerem, no máximo serem transformados em outra coisa, como ânforas e taças de vinho. Lupicínias e Fábias tinham em suas casas altares particulares à Vaticana, protetora dos lares. Os egípcios viviam para o além-túmulo, num anseio de que esta vida carnal chata acabasse o mais rápido possível. Os celtas tinham os seus pozinhos: viam quem bem entendessem ver. Os hindus têm até hoje uma profusão de deuses, tanto quanto as cores e as luzes que alegram o reles existir. Nos regimes totalitários distribuíam retratinhos dos líderes como consolo aos camaradas. Theolinda tem uma prateleira cheia de doces e flores para a entidade Menina. O pasteleiro tem um nicho em sua loja para oferendas ao mítico imperador Huang. Seu Nicodemos tem um oratório a São Jorge. Dona Helga tem os retratos de seus ilustres antepassados sobre o piano de cauda. Seu Antenorth tem uma enorme bandeira americana pendurada na sala de jantar, sobre a escultura de uma águia-de-cabeça-branca. As caligrafias islamitas... A estrela dos hebreus... O choro das mulheres ao pé da Santa Cruz...
Eu tenho apenas a minha natureza, telas em branco e muitas dúvidas, para não falar das dívidas.
O que seria de nós se não existissem sonhos, fábulas, contos, símbolos grafados... na areia, que a maré alta levará; na pedra, que o vento apagará; no papel, que o fogo queimará? O que seria de mim sem os amigos pios que acreditam ter o dever de transmitir a sua própria fé?
Se meus pés tremerem, se meus dentes rangerem, será talvez por pensar nesses assuntos longe de qualquer inferno possível. Mas também pode ser uma febre passageira.
Tinê Soares – 21/05/2008

7 comentários:

TS disse...

Dante tinha um perfil... quase do próprio chefão das chamas eternas! (rs)
Foi boa a ideia da caricatura, Liberati, valeu.

ze disse...

o santinho barroco aqui é Menino Jesus em pé com o coração na esquerda àltura do coração mesmo e o mundo azul na direita àltura do fígado. junto tem várias estatuinhas de santos vários. Quanto ao Menino Jesus a estátua creio significar 'o coração acima do mundo'. O Durante é santo. Viagens semelhantes houveram entre os mulçumanos antes dele.

Anônimo disse...

Com será maravilhoso...sentir o amor divino que emana diretamente de Deus, "o amor que move o Sol e as outras estrelas"... a visão espiritual, é uma meta...será que simples mortais são capazes?

Tinê...minha "superstar" amiga... te deixo um beijo e meus parabéns...até a próxima...

ze disse...

por quê o Dante está com bico de bicho? parece aquela anta falada lá atrás.

ze disse...

pois é Zina, o Amor enquanto método científico é justamente o quê está faltando: o exemplo de Dante é ótimo já que para ele as coisas funcionavam do jeito antigo, Musas e tal.

LIBERATI disse...

Querida Tinê, e dizer que Dante viu Beatriz (se não me falha a memória) uma vez só na vida e se apaixonou perdidamente, tanto é que a leva para passear na sua Divina Comédia. Amar com consequências só na época de Shakespeare.
Gostei muito de ilustrar sua bela crônica.
bjs

Anônimo disse...

é... temos aqui um viagem não só uma crônica. aiaiai