3.5.08

Crônica da Tinê: Xica da Silva reciclada


Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã, me sorri um sorriso pontual e me beija com a boca de hortelã.”

Assim começa a canção sobre o cotidiano de um trabalhador. Uma visão masculina do homem que ao fim da jornada tem uma mulher em casa à sua espera no portão. E quando ela cansa de esperar? Há cantiga de consolo ou ela troca de portão?

Altiva, sem pompa. Corpo forte, pele escura, touca de meia na cabeça e disposição de ferro, assim é a mulher que vejo no meio-fio revirando o lixo ou puxando a carroça de duas rodas sem burro, ela é a própria tração. Animal!

Com método de pesquisador, ela separa o refugo. Papel, alumínio, plástico aos montes, já que, por razões que desconheço, ela não pode separar os alhos dos bugalhos de sua vida que a tornaram o "homem" da casa.

Sim, todo dia ela faz quase sempre igual. A variação fica por conta dos achados e do trajeto percorrido até chegar à balança na praça no outro lado da cidade para pesar e anotar em seu cartão a féria do dia.

Um prato de canjica, um gole de café. O garimpo desta mineira começa cedo. Tem supermercado que junta material num canto para ela. Tem rua de morador festeiro onde ela é rápida em se apossar das latinhas - metal vale quanto pesa, é uma sorte danada encher o balaio somente com festa.

Ao contrário de outros companheiros na mesma lida, ela não é de fiar conversa, fareja no ar qual loja renovou estoque e descartou o lixão bom. A busca é todo santo dia.

Em dias e horas diferentes nossos caminhos se cruzavam, passei a cumprimentá-la. No início ela me olhava de soslaio. Um dia disfarcei, fui clicando bueiros até parar diante dela, perguntei-lhe o nome. Deixou-se fotografar. Não me fez perguntas. Então não lhe perguntei mais nada. Só prometi cópia da foto. Ela sorriu, apoiou a alça da carroça nos ombros e se pôs em marcha.

Aos domingos ela deve sentar na soleira da porta para descansar quando o corpo se abandona mas o olho por conta própria vasculha a área por uma lata, um frasco, coisa pouca, pois sua vizinhança tem lixo magro como o filho ou neto que corre feliz pela rua atrás da bola murcha. Ela não deixa a bola furar.

Ela não sonha ao meio-dia enquanto engole a bóia fria. Ela não é ácida como hortelã nem amarga como café. Ela não espera ninguém especial além da própria janta.

Pensar na vida é se lembrar de ir a tal lugar no dia seguinte e torcer para não chover. Pensamento sério, apenas a gratidão ao Ser Divino por ter força nos pés em sandálias de borracha e nos braços nus que sustentam a carga como a canga no boi.

Dia desses, ela passará ligeira com sua carroça vazia de fim de tarde carregando uma caixa bonita. Um rastro perfumado anunciará que, além de ser o arrimo da família, a papeleira também é a mulher que gosta de ganhar sabonetes pelo dia das mães, da avó, da mulher, do trabalhador...

Tinê Soares – [29/4/2008 - 17:37:51]
NR: A foto também é da Tinê .
O Editor aproveita a oportunidade para pedir desculpas públicas, pois cochilou no dia do trabalho e só postou esta bela crônica hoje.

2 comentários:

ze disse...

'tá de chorar. e Àfrica que está com 100.000.000 (não são 100.000) com fome? vivemos no Apocalipse de s. João, os cavaleiros da fome, da guerra e da peste - literalmente, estão soltos.

Anônimo disse...

Quando penso no mundo e no momento atual, em que cada vez mais mulheres saem para assumir posições no mercado de trabalho, sempre lamento a troca que ela fazem preterindo outros valores.
Embora na cidade em que moro esta cena seja bem comum, eu vinha me esquecendo desta parcela que não tem oportunidade de fazer escolhas.

Por mais que se tente analisar fatos de modo sensato, de forma sensível, sempre nos escapa aspectos óbvios, reduzindo então nossa analise à no máximo um palpite ingênuo. Bom... o importante é reconhecer que temos TUDO pra aprender nesta vida de meu DEUS. rs