
Eu era menina quando o conheci no Leblon. Fiquei encantada com a cor da pele, os traços do rosto, o sorriso encimado por um bigode. Imaginava-o com um turbante, uma flauta e uma naja. Mas o que eu mais gostava daquele senhor era o sotaque. Indiano criado em França, ou francês de origem indiana, eu sempre me atrapalhava com a nacionalidade dele. Parte de sua família vivia em Suriname, e dali M'sieur Saloué bandeou para o Pará. Desenhista topógrafo, trabalhou durante anos com meu pai na Amazônia, quando ainda existiam índios pelados e seringueiros de cuia por todo lado que não falavam inglês. Meu pai, um mineiro contador de causos, e Saloué, um admirador das nuances regionais do Brasil, ambos faziam parte do que hoje chamo de "quarteto de ouvintes de música clássica selvagem", isto é, audição no meio da selva, graças aos elepês de um japonês chamado Yoshitaka, o cartógrafo. O quarto elemento era um carioca com o jeitão de Clint Eastwood. Depois de muito Tchaikovsky, Debussy e Ravel entre mosquitos da malária, de subir e descer rio entre Porto Velho e Belém do Pará, o grupo dispersou com o voo do besouro em busca de trabalho em outro violino. Ficou a amizade.
Dezoito anos se passaram. Em breve estadia no Rio de Janeiro, M'sieur Saloué fez questão de visitar o velho companheiro. Minha mãe preparara um almoço especial em mesa florida - "quem vem da Índia gosta de cores e aromas, quem vem da França espera ser bem servido", ela dizia. Na verdade, ele acabara de vir do Ceará. M'sieur chegou abraçado a um enorme embrulho. Com reverência, entregou o presente à dona da casa. Com muito papel para abrir, M'sieur explicava que fora mostrar o Nordeste à irmã que vivia na Guiana, que ficaram deslumbrados. Filho de boa casta da Índia, o colorido sol nordestino deve ter-lhe ativado a memória do ancestral Holi, a festa hindu das cores. Era um sujeito muito emotivo. Suspense. Seis sorrisos congelados. Até o besouro imaginário parou de zumbir diante do brilho multicolorido dos quartzos moídos, das areias tingidas, da habilidade e paciência do artesão, da exuberância da forma, daquela coisa bem brasileira em forma de... um pavão. Naïf. Uma autêntica arte ingênua que se destacava em qualquer ambiente.
O desfecho teve seis versões, prefiro a minha. Mais belo do que a silhueta de um pavão a voar contra o sol do entardecer, só mesmo o rabo aberto em leque com olhões de penas azuis e verdes que vibram durante a dança do acasalamento. Pois o nosso pavão era solitário, coitado, tremelicou por todas as paredes da casa, não combinava com nada. O bicho-quadro foi recolhido ao fundo do armário. Se o dadivoso anunciava outra visita, era corre-corre para reorganizar os quadros pendurados na sala para que o pavão pudesse, mais uma vez, exibir-se em toda sua glória. Dona Nini, nossa funcionária doméstica, não entendia o alvoroço, devia haver algum mistério: nunca vira pássaro tão formoso, melhor que aqueles borrões que chamavam de arte. A patroa achou a panaceia uma injustiça e decidiu: o pavão ficaria permanente num canto próximo à janela para que a luz o fizesse brilhar, sem se importar com a decoração. A cortina cobria, descobria... cobria, descobria... cobria, descobria... Ela ainda tinha recomendado manter a janela fechada naquele lado por causa do vento.
Tinê Soares – 04junho2008
9 comentários:
beleza de história,Liberati.ate hoje guardo um recorte de uma caricatura q vc fez do Paulo coelho.genial.abço.
Caro Junior Lopes, a história é da Tinê Soares, nossa correspondente na roça e cronista de mão cheia de histórias. Que legal você ter essa caricatura do Paulo Coelho guardada, sabe que publiquei ela aqui nesse blogue, só que ainda não organizei este espaço para encontrar as coisas.Vou botando em ordem aos poucos.Fico contente com sua visista, volte sempre, é muito bom ter os companheiros de traço por perto.
Grande abraço
É minha querida...
diria que nada vale mais que uma amizade de verdade...
nem obras de artes de alto custo...
o que vale mesmo é o que vai no coração...
que orgulho eu teria de ter na minha sala tão lindo pavão...
de tão querido amigo...
assim como estar aqui, lendo sua crônica...
um prazer impar...
um privilégio...
aliás me fes lembrar de meu Galo de Barcelos...
mas isto é outra história, que conto outra vez...
beijos minha amiga TS...
Esta sua crônica me remete imediatamente à questão cultural: valores, conceitos e até mesmo o "gosto" (aquele que "aprendemos" a admirar e ainda que não gostemos, sentimos ser impedidos de contestar, já que unânime.). Clarice dizia: "Todo mundo acha que tudo que eu falo tem que ser profundo. Não. Eu falo bobagens também!" (rs). Amo Clarice. Mas até mesmo quem não gosta (?) não tem a "coragem" de fazer uma crítica aos trabalhos dela. Criam-se ícones de verdades inquestionáveis. O belo para o indiano não era para a família. Mas era para a empregada, que no Naif, entendia e conseguia interpretar a imagem. Ok! Claro que temos o direito de expressar nossos gostos (caso contrário, que horrível seria), mas compreender e respeitar as diversas culturas, isso sim, para mim, é fundamental. Bjos.
Aqui na "roça" ´é uma raridade encontrar pessoas que conseguem contar um "causo" com tantos detalhes ao ponto de criar alucinações visuais...
Comovente. Que memoria. Escrita autentica de quem viveu e registrou por si.
M.R.L.
"Solteiro, leão; noivo, pavão; casado, jumento de estimação." diz o ditado. Os geólogos e cartógrafos desbravaram o país, literalmente. Bandeirantes modernos.
Zina-poética, depois me conta sb o Galo de Barcelos; Ed, vale uma tese e Clarice é inesquecível; Igor, leia o ditado transcrito pelo Zé: mto apropriado...; MRL, as vzs a história comove; ZÉ, agora é tudo feito por satélite; Liber, seu pavão ficou mais bonito q o original.
A todos, obrigada.
Tine
Tinê, muito divertida sua crônica. Gosto e estética são quesitos questionáveis mesmo...imagino o conflito familiar!
Postar um comentário