12.7.08

Crônica da Tinê: Minha Lisa do Joá (Continuação)


O artista foi a casa da família para captar a tal alma florescente. Não fez nenhum croqui. Lisabeth retraiu-se ao notar aquele homem a esquadrinhar seu corpo como se procurasse assimetrias, ou uma pinta natural que a autenticasse como sendo ela mesma e não outra pessoa. Talvez fosse recurso para intimidá-la e ler em seus gestos dissimulados o que sua mudez velava. Por certo ele viu que a jovem valorizava cabelos e mãos, e que nunca lhe disseram que tinha pescoço de cisne, pormenor facilmente corrigível no retrato. Percebeu também alguns paradoxos, como o olhar triste de um ser crítico numa cara avoada em quem é chegado a controvérsias... contudo, naquele momento, a filha de dona Lêda satisfazia a vaidade ao ser musa temporária de um artista. Ele invadiu seu quarto, fuçou seu armário, desaprovou com meneios de cabeça suas roupas da última moda, até rabiscar um vestido em pedaço de papel: um tubinho reto, pala com nervuras, mangas compridas, gola de renda em estilo holandês. Ainda decidiu a cor do tecido: verde-veronês. Começou mal, deve ter pensado minha amiga, ser retratada como uma flamenca em verde-exército, verde-petróleo, verde-garrafa... seja qual for o nome que dessem àquele verde, então, não haveriam panejamentos? Com cabelos soltos e o anel de pérola em primeiro plano, podia ser... "Ora, vamos, não será tão ruim assim, lembre-se que, num frio desgraçado, Claudel posou nua, contorcida sobre um tablado durante horas, a um implacável Rodin, e você estará vestida como uma freira diante de um senhor amável." Lisabeth corou, não sei se de vergonha ou de raiva.

As sessões no ateliê foram mil detalhes resumidos em "Ohhh". Marcas de giz no assoalho de madeira do antigo sobrado. Jirau grande. Parafernália típica. A luz vinha de enormes claraboias. Pé-direito muito alto. Janelas estreitas. Não fosse o trânsito barulhento imaginaria águas plácidas lá embaixo com nenúfares boiando. Cantatas de Bach balbuciadas pelos Single Singers vinham do tocadisco. Petrificada sobre um banco, Lisabeth manteve a pose. O esboço começou pelos olhos. Dias e dias, somente olhos. Traços para o resto. Pausa para relaxar, tomar chá e ver fotos de viagens. Retorno à imobilidade. Durante o vaivém dos olhos - cavalete, modelo, cavalete - o artista entretinha dona Lêda com assuntos variados, de remédio caseiro à política. Quando a modelo angulava a cabeça o artista rápido trocava a música. "Dave Brubeck ou Lalo Schiffrin?" Ela escolhia o tchin-tchin-bum percussivo com sax e piano-jazz para espantar o sono. Às vezes aparecia alguém discreto no ateliê, como o rapaz dos garrafões a carvão - "É filho de um amigo meu, quer ser desenhista mas não delineia uma batata." Ou como a vez em que uma mulher irrompeu sala adentro e o artista de imediato disse em tom defensivo "É dela o vestido que você encontrou!" Um dia Lisabeth se abstraiu das conversas. Observou no artista uma dor disfarçada. Seriam câimbras ou cicatrizes doloridas do tempo de sua militância? Ele notou que ela notara. Assim como ele, ela também tinha olhos sagazes.

A tarefa de posar terminara. Mãe e filha foram espiar. Traços delicados que mal conseguiam enxergar. "Está pronto?!" O artista disse não, dali por diante seria ele sozinho para eternizar os quinze anos. Após grande expectativa, o quadro fora entregue. Em preto e branco. Dona Lêda quase teve um ataque. A filha chegou em casa, doida para contemplar seu presente escondido sob panos. Pela cara da mãe... Lisabeth perguntou aflita: "O que foi? Ele me retratou como um tocador de banjo ou pelada sobre os Arcos da Lapa?" Um tio riu amarelo, "Não... parece mais com a Estrada do Joá." Lisabeth num rompante abriu os panos, olhou, olhou... Ela fora envelhecida por uns dez anos, olhos penetrantes, boca com uma covinha que nunca vira ao espelho, pescoço atenuado por longos cabelos, uma paisagem negra ao fundo, sem o anel de pérola. Assim permaneceu a "Mona do Joá" durante anos, a observar quem passasse pela sala de jantar, mesmo depois que a retratada partiu, até o dia que caiu da parede e se desfez em cacos.

Eu tive mais sorte. Não posei nem para camafeu. Tive um baile ao avesso: almoço com parentes queridos, roupa vermelha futurista com sóis que eu mesma pintei na barra da saia, um namorado com quem toquei ao piano Bife Americano a quatro mãos, anel de pérola à vista de todos, de noite fomos ao Barbarella do Lido, cantaram para mim "Oh Susie Q", meu copo do brinde foi ao chão, "say that you'll be true, and never leave me blue", dezenas de cacos espalhados, cinábrio, nácar, carmesim, cerúleo.
Tinê Soares – julho2008

5 comentários:

Anônimo disse...

Hoje me impressionei um pouco com o restante do conto: há u que do modo que escrevia meus contos (e nunca mais escrevi... me faz falta). Lembrei-me de "Sara", um conto que quero te enviar e ver o que acha. Sua opinião, aliás, será importante demais para mim. Quanto ao retrato... (para que servem mesmo os retratos???) Beijos grandes.

TS disse...

ED, cê mandou o txt pra mim ou pro Liber?

Isso não é conto, é crônica mesmo.

Fiquei curiosa c/ esta sua "Sara". Eu já fiz um txt cujo título era "Fritz Jacó 'no ser' bocó".

Para que serve um retrato? Bem, aí depende do retratado... mas, no caso, resultou em uma obra d arte.

Nossa troca d opiniões é importante p/ termos ideia "de fora" do caminho em q estamos. Obrigada, beijins.

Anônimo disse...

Ah...assim, o sonho virou pesadelo...Mas 15 anos que se preze, tem mesmo é um grande baile, com todos no salão, com vestidos impecáveis... e sonhos, muitos deles por se realizar... é a vida que começa... pois é amiga... na primeira faze de sua crônica, prefiria retratar-me...mas pensando bem... dada às última circunstâncias...posso mudar???? Menina, a cada palavra sua, fui materializando o cenário... vendo toda a cena do retratista e da retratada...acho que foi cruel o resultado... mas...valeu pela experiência não??? Beijos...obrigada pelo toque... e vamos ver so sol!!!

ze disse...

boa pergunta, 'pra que serve um retrato ?'. ele espelha, algo da Pessoa. Há o indivíduo e há a pessoa. Um conversa com ooutro dentro de cada ser humano. Eventualmente encontram-se e unem-se. É um trabalho largo o deste encontro com Si-mesmo. Trabalho que cada um realiza sozinho, denro de si. Especulo. Bjjs, Tinê.

Anônimo disse...

Tinê, me identifiquei muito com esta menina filha de Da. Lêda, como creio que me identifiquei também com sua festa de 15 anos. Eu sou musa d eum pintor também, meu marido....ser musa, o que deve ser entendido, nunca é sinônimo apenas do estabelecidamente "belo".