26.7.08

Depoimentos sobre Macunaíma - 2 -


(Continuação da matéria sobre Macunaíma, belo trabalho de apuração de Jorge Sanglard)

Cristovão Tezza
“Mário de Andrade é desses paradoxos que enriqueceram e deram consistência à literatura brasileira do século XX. Colocou a arte literária a serviço de uma teoria, e as duas coisas resultaram boas, o que nem sempre acontece com a vanguardas, cindidas entre uma coisa e outra; ‘Macunaíma’ é um achado de linguagem, imaginação literária e realização de uma tese, que continua nos dando pano pra manga. Em alguns aspectos, Mário de Andrade antecipa Guimarães Rosa; em outros, procurou pelo faro discutir a questão da língua brasileira, sem entretanto dispor de uma lingüística (que, como ciência, chegaria aqui com muito atraso) – mas continua sendo uma boa pauta para o Brasil do século 21. Para ele, a assombração da identidade brasileira sempre teve a aura do nacionalismo crítico, e não do patriótico. O melhor elogio de todos: sua obra continua viva a provocar respostas”.

Antonio Torres
“Antes de tornar-se um ícone do modernismo neste lado do paraíso terrestre, habitado por um povo expulso do Gênesis, na visão dos escritores-viajantes europeus do século XVI, Macunaíma já reinava nos confins das selvas amazônicas, como um espírito grande e bom, a divindade que criou a terra e as plantas. Esse mito de várias nações indígenas que habitam a oeste da serra Roraima e o alto Rio Branco, no extremo-norte do Brasil, se corporificaria como um típico personagem brasileiro do século XX: o herói sem nenhum caráter. Empenhado em captar em profundidade o temperamento brasileiro, Mário de Andrade fez do seu ‘Macunaíma’ um tipo popular, em cujos defeitos e qualidades (menos nestas do que naqueles), toda uma sociedade, basicamente formada por náufragos, aventureiros e piratas oriundos das ocidentais praias lusitanas, pode se reconhecer. Ainda que, macunaimicamente, venha a negar qualquer verossimilhança”.

Glauco Mattoso
“Em dois dos sonetos que fiz para o Mário, eu diminuía o mérito de ‘Macunaíma’, em favor do Mário contista, mas era porque nos contos ele foi mais realista, e não aprecio escapatórias surreais nesse gênero. Ocorre que, na literatura universal, são os grandes romances que, em prosa, arquetipificam os mitos, e ‘Macunaíma’ é talvez o maior arquétipo do malandro brasileiro, preguiçoso porém esperto, elevado à categoria de mito, que nas décadas seguintes seria consagrado, menos na prosa que na poesia, pelo cancioneiro popular, a exemplo do ‘mulato inzoneiro’ de Ari Barroso e do ‘rapaz folgado’ de Noel Rosa. Nesse sentido, o romance torna-se um feito invejável, e não por acaso quem mais o invejou foi Oswald, já que a mitologia macunaímica sintetizava tudo que o próprio Oswald pretendia com sua teoria da antropofagia. Se a rivalidade entre Mário e Oswald pode ser equiparada, para efeito de torcida, à que os fãs dos Beatles e dos Stones vêm fomentando, eu arriscaria a comparação entre ‘Macunaíma’ e ‘Sergeant Pepper’s’, marco que os Stones tentaram copiar e jamais conseguiram, ainda que, no conjunto da obra, tenham sido mais rebeldes que os Beatles. Na mão inversa, a negritude sonora dos Stones equivaleria àquilo que os Beatles jamais conseguiram.
‘Macunaíma’ desempenha, até às avessas, na minha óptica, a síntese intercambiante e
dialética dessas contradições. O Mário Beatle foi mais negro que o Oswald Stone, que foi mais índio que Mário. O herói descaracterizado foi mais cafuzo, mais mameluco e mais mulato que todos os Marioswalds Beatlestones da vida real. A criatura devorou, antropofagicamente, seu criador”.

Iacyr Anderson Freitas
“A obra multifacetada de Mário de Andrade representa, para a cultura brasileira da primeira metade do Século XX, um momento de renovação ímpar. O autor de ‘Macunaíma’ militou, com qualidade, em diversas áreas do panorama estético tupiniquim. Sem o seu peculiar empenho – como articulador, crítico, poeta e prosador –, o movimento modernista brasileiro não teria alcançado a enorme projeção que a história lhe reservou”.
(O desenho que ilustra esta parte da matéria foi feita por mim e publicado no livro Astronomia do Macunaíma de Rogério de Freitas Mourão pela Editora Francisco Alves)

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