24.7.08

Depoimentos sobre Macunaíma


(Hoje publicaremos uma parte da continuação da longa matéria apurada por Jorge Sanglard. Vão para o espaço cibernético alguns depoimentos de importantes figuras das letras e artes dessa terra com muita saúva e pouca saúde e de outras terras de além mar)
Depoimentos inéditos sobre Macunaíma e Mário de Andrade
Mário de Andrade e Portugal
/ Arnaldo Saraiva
Já se disse que Mário de Andrade foi “autor de grandes obras falhadas” e foi “segundo em todos os géneros”.O que não deixa de valer como grande elogio quando se sabe da existência de muitas obras primas que são capelas imperfeitas ou da quantidade de géneros cultivados pelo autor de Amar, Verbo Intransitivo. E quando se sabe que ele viveu pouco mais de meio século, bem menos, por exemplo, do que os outros grandes Andrade do modernismo.
De qualquer modo, não se pode negar que há um género em que ele foi primeiríssimo - a epistolografia. Convencido de que tinha que cumprir uma missão cultural num país atrasado, mas também com a vaidade ou a veleidade de ser ”papa do modernismo”,
inundou o Brasil com cartas, gastou muito do seu tempo, num tempo sem internet, a catequizar ou a dialogar por escrito com os seus pares e com qualquer bicho careta que o contactasse.
Nas suas incontáveis (até hoje) mensagens nem sempre a evidente cordialidade ou generosidade disfarçava alguma impreparação filosófica e alguma viciada teorização.
Por exemplo: sobre o Brasil, que tentava a todo o custo “unificar”, ele que surpreendeu o arlequinesco de S. Paulo, ou a sua própria fragmentação (“Eu sou trezentos”...), ou sobre a língua, para que inventou uma divertida Gramatiquinha, ou sobre Portugal, que em carta a Drummond chegou a dar como “paisinho desimportante para nós”.
Escrita por sinal quando em Portugal andava Pessoa, essa frase podia traduzir um normal ressentimento anti-colonialista, que aproximava o seu autor de integralistas ou de primários lusófobos então com sucesso garantido, mas até como “boutade” pareceria imprópria de um autêntico modernista, ou de um autêntico brasileiro, que ainda por cima se queria folclorista e etnógrafo.
Poucos anos antes de morrer, Mário viria a confessar que o seu antigo desprezo pela cultura “portuga” só se devia à sua ignorância dela. Mas numa das (significativamente, poucas) cartas que mandou para Portugal, uma carta-dedicatória inédita dirigida a Adolfo Casais Monteiro, já em 1934 ousava escrever, também com exagero: “Talvez dentre os brasileiros da minha geração nenhum esteja tão próximo dos portugueses quanto eu”.
E para que o seu destinatário não caísse das nuvens, logo se justificava dizendo que o “gosto de diferenciação” representava psicologicamente nele “mais um traço de amor”: “Amar Portugal por Portugal, por ser português, e não porquê /sic/ seja tradição minha”.

João Gilberto Noll
“De fato, é difícil se imaginar a literatura brasileira de hoje sem a existência de Mario de Andrade. Ele refez a trajetória do herói romanesco brasileiro, que tinha nas sutilezas irônicas de Machado a sua marca indelével. ‘Macunaíma’ aposta na carnavalização da vida vivida abaixo do Equador. E reencena a língua portuguesa, no sentido de explorar uma linguagem com uma brasilidade frenética, grotesca, desproporcional, patética. Esse romance parece se entreter muito mais com uma atmosfera epopéica (mesmo que paródica) do que na ordem do romance burguês, voltado com freqüência para a lenta formação de um protagonista de talhe realista, com uma narrativa conduzida com certa erudição na revelação dos detalhes físicos e anímicos. Acho que, sem Macunaíma, o ensaísmo do escritor brasileiro, de propagação modernista, correria o risco de, com o tempo, se esfarinhar. Em ‘Macunaíma’, sai do palco o herói problemático do Século XIX e entra um personagem-síntese dessas pulsões ao sul do mundo, caótico em sua complexidade, manhoso, teatral. Sim, era possível chegar aí. E Mário chegou”.

Fábio Lucas
“Mário de Andrade dialogou com o Brasil inteiro, oral e escrito, e queria romper com o retrato do Brasil de feição luso-estrangeirada, eurocêntrica. Compôs num fluxo ‘Macunaíma’ (rascunhado em 1926) na seqüência de estudos folclóricos e antropológicos, nos quais pretendia surpreender o rosto da ‘entidade nacional dos brasileiros’. Romance (ou poema herói-cômico) cujo protagonista, tendo mais de uma face, é cognominado ‘o herói sem nenhum caráter’. Ou seja: sem feitio moral ou sem característica. O relato escapa das convenções, quer na articulação causal-temporal, quer no emprego da língua, inçada de desafios morfo-sintáticos. Ao apresentar o seu ruidoso livro, Mário de Andrade reúne algumas características do brasileiro que se aprofundaram com o tempo: a honradez elástica, a gatunagem sem esperteza, o improviso, a falta de censo étnico (que os novos colonizadores estadunidenses tentam impingir-nos sob a forma de racismo em cotas, compartimentado, não miscigenado), a sensualidade pornográfica, presente no que o romancista chama de rapsodismo popular. Mário de Andrade quis pensadamente desgeograficar o seu herói, o que significa desprovinciar o Brasil. Mas as várias anotações que fez para explicar a obra contêm ainda certo absolutismo do autor, traço hoje em dia contestado, quando se admite que a cada leitura corresponde uma interpretação, uma obra diferente, porque o leitor é que dá sentido às palavras do autor. Entretanto, ‘Macunaíma’ se tornou marco da novelística brasileira”.

Luiz Ruffato
“Para mim, há dois grandes pensadores da cultura brasileira. José de Alencar, no Século XIX, e Mário de Andrade, no Século XX. E, curiosamente, de certa maneira, Mário de Andrade retoma alguns temas e reflexões de Alencar, pois ambos propõem a fundação de uma cultura nacional, integradora, que, embora respeitando as características regionais, deságue num todo homogêneo. ‘Macunaíma’ é a realização ficcional dessa proposta. É o primeiro, e talvez único, romance regional nacional brasileiro. Neste livro, Mário de Andrade faz de um personagem arraigadamente regional – amazônico, melhor dizendo – o grande emblema do país. Interessante porque ele consegue realizar num romance o que Alencar tentou em vários (‘O Sertanejo’, ‘O Gaúcho’, ‘O tronco do Ipê’, ‘Iracema’). E esta linha de continuidade – que abarca o Brasil como um todo formado por partes – se coloca em oposição a outro grande filão do pensamento brasileiro – que inclui Franklin Távora e Gilberto Freire, por exemplo, que pensam o país como várias partes que formam um todo. Os primeiros, revolucionários, integradores, progressistas. Os segundos, reacionários, xenófobos, conservadores”.

Moacyr Scliar
“Mário de Andrade não era apenas um grande poeta e escritor, era também um homem e múltiplos talentos, que incursionou com graça e agilidade por várias áreas do conhecimento e da cultura: música, artes plásticas, História, folclore. De sua obra multifacética um belo e curioso exemplo é ‘Namoros com a Medicina’ cuja primeira edição data de 1939, livro que aliás representava a volta do autor ‘ao velho vício da literatura’, segundo sua própria expressão, pois desde 1934 estivera ‘jogado fora da escrita, por paixões talvez mais humanas.’ Os dois ensaios que compõem o livro talvez não sejam textos ‘apaixonados’ mas nem por isso deixam de despertar prazer e admiração. O primeiro, ‘Terapêutica musical’ resulta de uma palestra proferida na Associação Paulista de Medicina e nela Mário fala com assombroso conhecimento da musicoterapia. O segundo ensaio, ‘A medicina dos excretos’ é ainda mais surpreendente. Nele, e valendo de seus conhecimentos do folclore, Mário faz uma análise, psicológica inclusive, do uso da urina e de excrementos na medicina popular. E conclui, com seu típico e irônico humor: ‘Não vá a observação se algum médico diagnosticar eu seja um escatófilo também. Não creio. E nunca mais porei a mão nestes assuntos, arre!’”

Milton Hatoum
“Mário de Andrade foi um intelectual completo, um humanista erudito e libertário, apaixonado pela cultura brasileira, mas sempre atento às boas novidades do exterior. Não por acaso ele foi um dos primeiros no Brasil a ler a obra de J. L. Borges. Ainda jovem ele estudou música, e isso foi importante para desenvolver sua sensibilidade artística. Na verdade, Mário transitou por várias linguagens: poesia, prosa, crítica literária e musical, cultura popular, patrimônio histórico, arquitetura, artes plásticas. A formação musical e a viagem pela Amazônia em 1927 foram decisivas para a elaboração da ‘rapsódia’ Macunaíma. A meu ver, essa rapsódia é uma espécie de prosa poético-polifônica, movida por uma imaginação romanesca em que os mitos ameríndios e a oralidade de uma sociedade em formação ocupam um lugar central. Macunaíma nos diz que a busca de uma identidade nacional é apenas isso: uma busca sem fim. E que a nossa identidade é mestiça, plural. Nesse sentido, ele foi um antropólogo do futuro, pois cedo ou tarde a Europa e o Ocidente serão mestiços”.
(Amanhã tem mais)

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