11.7.08

Redução da idade penal e endurecimento das penas


(Matéria publicada por Jorge Sanglard (*) em O Primeiro de Janeiro- Justiça & Cidadania - Porto – Portugal na qual apresenta um artigo da Procuradora do Estado de São Paulo, Ana Sofia Schmidt de Oliveira- A matéria e o artigo foram publicados em 30/06/2008)
A macro e a micro violência têm sido debatidas no Brasil, cada vez mais, em vista dos acontecimentos que vêm marcando os grandes centros urbanos nestes primeiros anos do Século XXI. As populações das grandes cidades brasileiras enfrentam problemas no setor de segurança pública e a sociedade amedrontada exige medidas para coibir a violência e cobram o fim da impunidade.
–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Em meio a discussões no Congresso brasileiro, alguns setores defendem propostas polêmicas, como a redução da idade penal e o endurecimento das penas no país. Tais proposições são avaliadas e questionadas por especialistas no enfrentamento da violência. Apontadas como simplismos perigosos para resolver uma questão complexa, estas propostas estão no centro do debate. O psicanalista brasileiro Jacob Pinheiro Goldberg declara: “Hoje, somos todos reféns da bandidagem. Mas mudar o jogo exige mudar as regras”. Ao lado da procuradora do Estado de São Paulo, Ana Sofia Schmidt de Oliveira, em debate promovido pela Revista OAB-MG 4ª Subseção e pela Escola Superior de Advocacia da 4ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais, o doutor em psicologia defendeu que o importante é o desenvolvimento de uma visão crítica diante de uma realidade complexa e argumentou que é fundamental rechaçar soluções simplistas como o aumento do rigor das punições, a redução da maioridade penal e a criminalização de novas condutas. Em artigo especialmente cedido ao Janeiro, Ana Sofia Schmidt de Oliveira, adverte que o essencial é colocar-se, especialmente aquele que se ocupa do sistema como policial, advogado, juiz ou promotor, numa posição de maior humildade, incorporando a crença de que, se o sistema deixar de causar um mal maior do que aquele que pretende combater, já terá feito grande coisa.

Artigo de Ana Sofia Schmidt de Oliveira (**)

No imaginário social, o sistema penal é um eficiente filtro, uma peneira, capaz de distinguir os bons e os maus elementos de nossa sociedade, capaz de separar, de apartar, do meio social os não adaptados. O sistema (re)produz e reforça uma visão maniqueísta da sociedade, trabalhando com sistemas de juízo binários: bons e maus elementos, inocentes e culpados, absolvidos e condenados.
A propaganda do sistema o vende como o instrumento capaz de pinçar do meio social aqueles que o colocam em risco. Se o sistema penal deitasse no divã de um analista, poderia dizer algo assim: “eu existo para proteger a sociedade, para dizer quem é bom e quem é mau, para separar o joio do trigo”; se prosseguisse seriamente no trabalho, iria ter que enfrentar a angústia decorrente de sua impotência para depois descobrir que sua missão não é essa. O fato é que a propaganda é boa e passamos a acreditar que o sistema realmente faz esta separação; passamos a acreditar que os muros da prisão, ao separar quem está dentro de quem está fora, separa mesmo os culpados dos inocentes, os maus dos bons.
Diversos projetos de leis e sentenças judiciais reproduzem estas crenças. Juizes afirmam que um determinado condenado não merece a progressão de regime porque só com a sua segregação é que chegaremos ao restabelecimento da paz social.
E olhando o sistema de perto, o que vemos? Uma engrenagem, uma verdadeira linha de produção – a polícia retira o suspeito (a matéria prima) do convívio social e o transforma em indiciado; o Ministério Público transforma o indiciado em denunciado; o juiz o transforma em réu; o réu vira condenado, passa ao sistema penitenciário e lá, na outra ponta do sistema, o produto pronto e acabado: o egresso do sistema penitenciário, prontinho para voltar para a primeira etapa da linha de produção.
Afastando o olhar para poder elaborar a crítica, vemos que esta linha de produção é movida por uma lógica própria, por crenças, desejos e mitos. E vemos, sobretudo, que ao recolher a matéria prima, o sistema funciona de forma absolutamente seletiva e que esta seletividade está relacionada muito mais às características de certas pessoas do que às de certas condutas. Algumas pessoas são praticamente imunes: precisam se esforçar demais para entrar na engrenagem do sistema; outras, praticamente nascem lá dentro. As crianças nascidas nas prisões de mulheres são a concretização de uma triste metáfora. Ainda para compreender esta seletividade, vale “convocar o marciano” – é uma estratégia necessária sempre e quando a repetição de uma certa realidade nos faz cegos diante dela. Pois bem, coloquemos diante do marciano dois meninos: um, de chinelo, shortinho surrado, sem camisa, braço fino e barriga saliente, olhar duro, rosto sujo; ao lado dele, um menino da mesma idade, com seu tênis de marca, roupa bacana, I Pod e celular no bolso. E dizemos ao marciano: “olhe para estes dois meninos. Um roubou e outro foi roubado. Quem é quem?”. O que há de responder o marciano? E se repetirmos a mesma pergunta para o policial experiente, para o promotor de justiça, para o juiz de direito? O que responderão? Bem, não é por acaso que as superlotadas prisões de todo o país estão cheias de pessoas com traços físicos muito semelhantes.
Mas não é só o preconceito que alimenta o sistema de justiça criminal. Pensemos nas crenças, desejos e mitos. Pensemos na questão da segurança. Afinal, o que é sentir-se seguro? A sensação de segurança, em nossa contingência humana, é sempre relativa. Basta lembrar que a finitude da vida nos espreita a cada instante. Assim, a “segurança possível” está relacionada a um conjunto de condições que nos dêem um mínimo de estabilidade, de confiança. Há uma infinita rede de relações formada por pessoas e instituições na trama de nossa vida diária que deve funcionar com certa regularidade para que nos sintamos seguros. Mas o nosso contexto social, marcado pelo individualismo, pelo avanço tecnológico, pela desigualdade social crescente, pelo consumo, pela descrença nas instituições, pela dúvida em relação ao futuro diante dos desastres ambientais, pela instabilidade nas relações de emprego e até mesmo nas afetivas – este contexto que acaba sendo um desafio permanente e complexo para aqueles que pensam a modernidade –, não é capaz de fornecer esta segurança.
Assim, associar a sensação de segurança à expectativa de “não ser vítima de crime” é uma grande simplificação. E há outra simplificação em jogo. Cotidianamente, somos vitimados por crimes de que nem nos damos conta, como os ambientais, ou aqueles do sistema financeiro. Mas o que queremos é só caminhar pela rua sem medo de ser assaltado. Seremos tão arcaicos em nossa sensibilidade que a dor física suplanta todas as demais? Tenho medo do estilete que o garoto encosta no meu pescoço, mas suporto bem a dor emocional que sinto ou deveria sentir ao me esquivar de uma criança que dorme suja na calçada? E quando eu penso na segurança que eu quero ter, qual dos garotos quero que afastem de mim? Crianças na calçada são invisíveis, mas tornam-se extremamente visíveis quando passam ao nosso lado cheirando cola ou quando têm na mão um pedaço de vidro, de pau ou um revólver.
Por tudo isso, reduzir a idéia de segurança à expectativa de não ser vítima de crime e, em especial, de não ser vítima de crime violento, é uma redução perigosa. Perigosa porque expõe e exige do sistema de justiça criminal mais do que ele pode dar. O perigo aumenta porque o próprio sistema se vê e é visto como o instrumento capaz de fornecer segurança, combatendo o crime. Muitas vezes a qualquer preço.
E o problema se agrava porque a utilização política da sensação de insegurança estimula o reducionismo e tem interesse na concepção acrítica do sistema. O movimento que teve início nos Estados Unidos e ficou conhecido como movimento “da lei e da ordem”, com a adesão de outras bandeiras (ou marcas) como o “get tough on crime”, “guerra contra o crime”, “tolerância zero”, propõe o endurecimento da resposta penal, o agravamento das penas, defende a resposta penal com o a única capaz de aumentar a segurança. Por aqui, a partir da edição da Lei dos Crimes Hediondos, não faltaram novas iniciativas com vistas ao endurecimento do sistema. Lembre-se, por emblemático, o regime disciplinar diferenciado que submete o preso ao isolamento praticamente total, inspirado nas prisões norte americanas conhecidas como “super max”. Não por acaso, a população prisional em São Paulo triplicou em dez anos. Não por acaso o déficit de vagas atinge recorde histórico. Nas celas superlotadas, o ciclo da violência se retroalimenta e a intenção ressocializadora ainda estampada na Lei de Execução Penal de 1984 fracassa. O sistema não entrega o produto prometido.
Esta ordem de colocações não busca uma solução para um problema determinado, mesmo porque não é disso que se trata. O que importa é desenvolver uma visão crítica diante de uma realidade complexa, é rechaçar soluções simplistas como o aumento do rigor das punições, a redução da maioridade penal, a criminalização de novas condutas. É colocar-se, especialmente aquele que se ocupa do sistema como policial, advogado, juiz ou promotor, numa posição de maior humildade, incorporando a crença de que, se o sistema deixar de causar um mal maior do que aquele que pretende combater, já terá feito grande coisa.
(*)Jorge Sanglard é Jornalista pesquisador e Editor da Revista OAB-MG 4ª Subseção
(**)Ana Sofia Schmidt de Oliveira é Procuradora do Estado em São Paulo, mestre em direito penal pela USP, autora do livro “A vítima e o direito penal” (Revista dos Tribunais, 1999) e sócia-fundadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
A Ilustração é de Jorge Arbach

Um comentário:

ze disse...

claps, claps, claps (som de palmas). A escravidão acabou há pouco tempo - a polícia e os ricos e a economia política, a ciência também, ainda estão no século XIX. Nas favelas a orientação do confronto é explícita, nos presídios acumulam-se muita gente que nada fez, apenas é pobre. A economia-política criminaliza a pobreza. Pobreza não é crime. Pobreza é Voto. Os padres fazem voto de pobreza. Felicidades.