
(Aproveitando que publiquei a caricatura de Alejo Carpentier, boto no ar mais uma vez uma crônica que fiz (mezzo resenha) sobre ele. Faz parte das minhas crônicas cubanas que gostaria de qualquer hora republicar aqui)
Tudo começou numa tarde ensolarada, ao seguir os passos de Hemingway nas cercanias do Bodeguita del Medio, onde ele tomava seus mojitos, e do Hotel Ambos Mundos, no qual escreveu Por quem os sinos dobram.
Naquele espaço mágico, acabei topando com outro escritor: Alejo Carpentier. Já tinha travado um contato de primeiro grau com ele nos
longínquos anos 70, em que tentei desvendar o seu livro El recurso del método.
Não sei como explicar, foi como se tivesse um ímã por ali. Eu perdido naquelas ruelas literárias de Havana, eis que me vi atraído para a sombra de uma bela casa espanhola, daquelas que têm um pátio com jardim interno. Nada indicava que se tratava de um dos lugares onde Alejo morou e hoje é uma fundação que leva seu nome. Lá estava ele em pôsteres, fotos, numa amostra de sua obras, suas canetas, lápis,
exemplares das muitas traduções que teve por este planeta e uma máquina de escrever moderna, sem graça, um pouco deslocada daquele mundo antigo.
A crônica morreria aí, se não acontecesse meu encontro com a verdadeira e histórica máquina de Alejo, dias depois, numa circunstância aparentemente estranha. Fiquei surpreso ao vê-la numa vitrine do Museu da Revolução (não é uma metáfora irônica). Lá estava ela, a máquina de Alejo (a foto que abre esta crônica é dela). Era uma “Hermes”, justamente aquela em que ele escreveu sobre uma outra máquina, esta mortífera no seu romance maior, El siglo de las Luces. No início desse livro, ele dá um show de escrita ao apresentar a guilhotina sem tocar no nome dela; ao fazer com que a gente a adivinhe apenas acompanhando a descrição da sua arquitetura sinistra. Aqui vai só um aperitivo: "…Esta noche he visto alzarse la Máquina nuevamente. Era, en la proa, como una puerta abierta sobre el vasto cielo que ya nos traía olores de tierra por sobre un Océano tan sosegado…"
Não me pergunte porque a máquina de Alejo estava ali solitária no meio daquelas carteirinhas do partido comunista, fotos de insurgentes, jornais de sedição, armas de mitológicos guerreiros e uniformes
manchados de sangue. Talvez porque Alejo tenha sido também um revolucionário ao seu modo. Foi preso na época da ditadura de Gerardo Machado. Quando outro ditador, Fulgêncio Batista, subiu ao poder, ele se exilou em Caracas. E como eles dizem lá na ilha, depois do "triunfo da revolução" voltou à Cuba e participou do aparelho de Estado até sua morte. Nada mais justo do que seu instrumento de luta figurar ao lado de pertences dos combatentes, mísseis e fuzis.
Mas sua ficção tem um imenso valor literário e autônomo e sua obra não pode ser considerada como uma literatura oficial como alguns ressentidos andam espalhando por aí. Sua ficção lançou os alicerces para o que hoje se chama de a grande arte de narrar latino-americana que maravilha o mundo. Não podemos esquecer de Lezama Lima e Cabrera Infante (este último brigou com Castro).
Quem quiser conhecer Alejo agora pode encontrá-lo numa tradução feita por Sergio Molina para a Cia. das Letras do magnífico "O século das luzes", que foi considerado um dos maiores livros escritos neste planetinha azul. Alejo nasceu em dezembro de 1904. Portanto, as comemorações do centenário do seu nascimento já aconteceram. Não podemos deixar de mencionar que estas crônicas que saem neste blogue são anacrônicas...
O livro Siglo de las Luces tem na forma barroca uma escolha do autor para narrar a história de um período de grande tormento e um herói polêmico, que teve existência real: Victor Hugues, que Carpentier diz ter sido ignorado pela História da Revolução Francesa. Esse aventureiro, possivelmente marselhês, é capturado pelo autor no momento em que tenta levar as radicais idéias da Revolução Francesa ao novo mundo, mais especificamente impor esse movimento no ambiente antilhano. É claro que junto com as idéias trouxe a temível "Máquina" que decepou as cabeças de quem se opusesse ao decreto do momento. É difícil falar deste romance: ele parece aquelas catedrais cheias de detalhes, volutas incríveis ornamentando os capitéis de diferentes desenhos, oratórios de moldura repleta de arabescos.
Temos a destacar a ironia de Carpentier, que vê os diversos momentos da Revolução Francesa no seu desastrado acontecer nos trópicos.
Desacredita aí a versão acadêmica, muito ocupada, segundo ele, em sacralizar os fatos ocorridos na Europa, pouco se lixando para aquele mundo de desespero das colônias, onde quem mandava eram Os Grandes Brancos e seu sistema escravagista. Leva ao ridículo os trajes das várias modas revolucionárias, numa macabra dança dos cabides que acaba num traje militar de Napoleão e o grande golpe. Assim ele mostra as ironias da história de um movimento que pretendia levar as luzes ao mundo e que terminou se negando pelo uso da guilhotina para sufocar a dissidência e a liberdade. Não à toa que usa nos capítulos títulos dados por Goya aos seus sombrios trabalhos Desastres da Guerra. Basta dizer que em Gadalupe e em Caiena a escravidão foi instaurada duas vezes.
Carpentier cunhou a expressão "real maravilhoso". Algo a ser descoberto numa iluminação que parte da realidade do novo mundo, uma revelação privilegiada. Com isso abriu caminho para um vôo literário que vai coincidir com realismo fantástico ou mágico de outros escritores latino-americanos.
Ele e sua máquina solitária que hoje mora no Museu da Revolução semearam palavras. E como na citação de Zohar que ele bota na página de abertura do livro: "As palavras não caem no vazio". Viva Alejo e sua máquina!
3 comentários:
a burguesia pegou, literalmente, a Revolução para ela e quer fazer uma cidadania laica - revolucionária porque a cidadania é religiosa por excelência. não há erro . mas deve-se pensar corretamente a cidadania. felicidades.
a porta aberta da guilhotina parece a boca do leão, ou do leviatã, ou da morte mesma - porta estreita.
O problema das revoluções parece ser a fase do terror ou o memento quando elas se cristalizam e se tornam pedras duras, paredes de cárceres dos próprios revolucionários. A guilhotina chegou a cortar a cabeça de seu próprio inventor M. Gilhotin ( é assim que se escreve?) e dos melhores revolucionários.
Revolução hoje é coisa do passado, parece que aconteceu em outro planeta.
grande abraço
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