9.8.08

Crônica da Tinê: Ying e Yang - Entre a Andorinha e o Dragão


Por causa das críticas que correram na Internet desde o ano passado, somadas à posterior perseguição aos tibetanos, incluindo a logomarca dos Jogos de Pequim adulterada para um paredão de fuzilamento, tive desinteresse pelo evento. Refleti. Apesar das sugestões de boicote de organizações estrangeiras, não achava justo barrar atletas que se prepararam para irem mostrar o seu valor, até uma pequena participação de um único atleta para júbilo de seu país de origem, só por questões políticas que não lhes diziam respeito. Solidariedade não é isto. Não foi a compaixão pela tragédia em Sichuam a dois meses do “Beijing 2008”, um dragão inesperado que rugiu do interior da terra amarela, e fez com que os chineses trabalhassem dobrado, desfalcados em sua energia pois, ainda assim, mantiveram o cronograma para a festa. Foi o ideal grego original, corpos sãos e mentes sãs plugados em sintonia entre os povos, aliado à perseverança chinesa. Irmandade, trégua nas picuinhas! As duzentas e cinco nações representadas nestes jogos que o digam (ou dirão, espero).

Ao assistir a abertura da primeira Olimpíada na China, imaginei todos os clichês ocidentais para o que poderia acontecer: de um dragão dourado a ondular pelas pistas com mil pezinhos em “lig-lig-lé, lá vem o ‘china’ na ponta do pé” aos malabaristas circenses, uns sobre os ombros dos outros, os últimos a girar pratos sobre longas varetas ao som de vozes agudas de mulheres com pés deformados desde a infância para calçarem graciosos sapatinhos bordados em fios de seda. Tudo à frente de um cenário de silhuetas laboriosamente recortadas em papel vermelho e sob foguetórios, como convém ao povo que inventou a pólvora.

Nada disso. Rufar de tambores, réplicas dos originais de bronze. Dezenas em sincronia. Um poema de sons e luzes a contar que "O Mundo é Um Sonho" através do papel, da tinta, da escrita, num desenho feito por gestos corporais - a dança da vida vira uma pintura sobre o desenrolar da história sobre o simbólico papel de arroz (locutor, pergaminho é feito de couro de cabra!). Monges com chapéus-pincéis transmitem a filosofia de Confúcio em ideogramas que surgem do chão em sobe e desce contínuo (locutor, não é a Grande Muralha, é o movimento da Terra sintonizado à Harmonia Universal!). Após aquilo que pareceu-me ser um gigantesco painel sismográfico, flores de cerejeira transformaram-se em humanos. A tradicional Ópera Chinesa vira mambembe - o homem movimenta fantoches. A percussão dá o ritmo para a Rota da Seda e o Poema de Tang. A bússola norteia os navegantes, seus remos formam leques pintados à mão. A relação da água primordial com a vida. Como nos movimentos do Tai-Chi-Chuan, mulheres cantam a sucessão das dinastias até o antigo encontrar-se com o moderno, em meio aos elementos principais da vida. Sabedoria. O mítico Dragão sobre os trinta e dois pilares. A pomba. A pipa. A pompa. Conquistas. O primeiro astronauta chinês. Esperança. Crianças em sala de aula sobre um céu azulzíssimo, sem poluição atmosférica alguma, pintam e entoam "Você e Eu", em chamamento coletivo à ação conjunta. Pássaros de luz revoam no topo do estádio. A grande folha de papel feita de luzes e homens enrola e desenrola, rolos para contar a saga chinesa com seus maravilhosos inventos. Um casal canta algo semelhante à "Música da Noite" durante a mutação do nosso conturbado planeta em gigante lanterna vermelha - a sugerir "Boa Sorte!", ou "Aqui é o lugar onde todas as nações em comunhão devem esquecer as mazelas, respeitar os anfitriões e prestigiar os atletas do mundo".

Chineses, parabéns. Até no desfile das delegações estrangeiras foram perspicazes: nada de ordem alfabética; foi visível a sutileza em contrastar os países entre si, tal como determinamos o lugar de convidados conflitantes à mesa de um banquete em que almejamos uma confraternização harmoniosa e pacífica.

Quando penso na China, mentalizo areias, cores, gafanhotos, vales montanhosos, árvores que espiam precipícios, rio largo com barco de junco guiado por lanternas em meio à neblina, paisagens esfumadas sobre papel-seda, pandas e bambus, instrumentos de cordas dissonantes, mineradores cobertos de carvão, grutas profundas onde recolhem o ninho das andorinhas para fazer sopa - um quitute milenar e antiecológico da culinária chinesa. Deste ninho veio o apelido para o Estádio Nacional de onde, visto de cima, parece projetar-se para o céu o grande olho... do Dragão!

Mas a grande surpresa fora reservada para o fim. Após discursos e bandeiras hasteadas, no abre e fecha rolo luminoso, todos se perguntavam - "Cadê a pira?" A chama olímpica já na oitava e última mão - "Onde estará a pira?!" Então o atleta-acrobata foi suspenso no ar, correu espaço acima, atrás de suas pegadas aéreas vimos pessoas de todas as etnias e crenças que formaram uma nação, todas as descobertas registradas no último rolo do papel-luz da grande história chinesa para alcançar a até então camuflada estrutura da boca... do Dragão!
Tinê Soares – 08/08/2008

9 comentários:

Anônimo disse...

Vi trechos do espetáculo (chamar de abertura é pouco). Fiquei engasgada. Quase perfeito. Só achei feio terem deixado Mao de fora da história. A China não seria o q é hoje se não tivesse passado pelas mazelas, mas tb pelo desenvolvimento, do governo dele. Injusto e inesperado, especialmente em se tratando de um povo q nunca deixou de olhar para trás.
Mas teu texto... mto bacana! Parabéns.
Sara

ze disse...

também vi. dormi na hora do acender da tocha. todos disseram que gostaram mais dos tambores. eu também. e dos dez mil de roupa branca fazendo Tai-chi ao redor das crianças que pintam. ritmo original , no sentido que vem das origens. dos tambores e dos de roupa branca, que gritavam. tudo arrepiante. faltou Mao, concordo. viva o Comunismo!

TS disse...

Tsc, tsc, tsc, uma leitora de Kardec e um tradutor de jatakas budistas reclamam a ausência do Vermelhão!

Mao está nos cartazes pela cidade ou em retratos domésticos; seria uma mancada dos chineses incluí-lo na abertura dos Jogos, pois a Revolução Cultural deu cabo de muitas tradições citadas no enredo da festa.

O Dragão está em "off".

Abraços em preto-e-branco para ambos.

Anônimo disse...

Não vi pq cofundi o horário, pode? Mas vi "flashs" e so deu água na boca. Quanto a Mao, concordo totalmente Tinê. Seria como fazer as olimpíadas no Brasil e na abertura colocar a cara do Médici. Pode? Bjos.

ze disse...

é tudo do Povo, não só os royalties mas o petróleo todo. o fim do lucro. nos campos também : é Deus quem dá a chuva portanto é tudo de todos. a terra inalienável. o velho comunismo.

Anônimo disse...

Pois é...TS, que dizer de tudo isso...impressionou? Claro, ...A cerimónia foi elogiada em todo o mundo pelo show proporcionado pelos fogos e pela sequência de coreografias perfeitas, que foram assistidos por mais de 1 bilhão de pessoas....verdade...mas...A espectacular cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim teve os seus segredos. Nem tudo era o que parecia ser. Os organizadores admitiram nesta terça-feira, dia 12 de Agosto, que parte dos fogos de artifício exibidos na televisão eram imagens em terceira dimensão produzidas por um computador...“Fizemos o possível para que parecesse real”, afirmou o porta-voz da empresa responsável pelos efeitos especiais, Lei Ming, ao jornal Beijing Times. ” A maioria das pessoas não notou a diferença”, concluiu...eu não... e você sabia disso??? Mas o que esperar nessa era em que olhos veem, mas não sentem...a beleza é mais que fundamental...Agora me diz, se...MAO TSÉ TUNG TRANSFORMOU UMA CHINA EXPLORADA E SEMI FEUDAL MARCADA PELO FLAGELO DA MISÉRIA E DA FOME EM UMA POTENCIA MUNDIAL ALIMENTANDO E GARANTINDO ESCOLA E EMPREGO PARA MAIS DE UM BILHÃO DE CHINESES...PERGUNTO? PORQUE SERÁ QUE DEIXARAM MAO FORA DESTA...SE ERA "TÃO BONZINHO" ???? AMIGA, ARRAZOU NA CRÔNICA... E VAMOS TORCER PELOS NOSSOS ATLETAS...COMO FALO NO MEU BLOG HOJE, SE HOUVESSE MAIS PATROCÍCIO, EMPENHO DO GOVERNO...HAVERIA MAIS MEDALHAS, MENOS VIOLÊNCIA NAS RUAS...BEIJOS, TS...

TS disse...

ED, respondi no seu blog.

ZINA, não importa se o espetáculo é resultante da tecnologia; mais importante foi a participação de milhares de figurantes q levaram a sério as "boas-vindas" aos estrangeiros; qto aos esportes no Brasil, falta incentivo desde a escola, não é como nos EUA em q enfatizam/patrocinam os desportos, da infância à faculdade; por isso respeito nossos atletas q encaram os desafios, esporte não é só futebol!

ZE:
Para lhe responder (e em parte à Zina), transcrevo um trecho de um comentário via e-mail, de um amigo, dia 10agosto:
"(...)Pelo que voce conta, deve ter sido muito bem feita, muito bem orquestrada, tudo o que de bom se quer mostrar de um país quando é governado por uma ditadura. A China socialista na divisão da pobreza, capitalista na concentração da renda, regiões divididas entre a abundância e a miséria, sem falar no intervencionismo expansionista no Tibet. Receio que a sabedoria milenar possa ser usada para a dominação, seja a econômica ou sob a mira dos fuzis. O mesmo sol que ilumina a beleza nos cega para o mal,(...).
Aliás, nem sei quem inventou essa associação da beleza com a bondade."

P/ mim, as Olimpíadas são uma união esportiva e não um congresso político, ou p/ provar a superioridade deste ou daquele povo ou raça - por isso, a cada edição o evento fica mais desvirtuado. A festa da abertura é apenas um detalhe.
TS - 15ago08

ze disse...

a China foi muito castigada. pelos estrangeiros. em '60 morreram vinte milhões de fome. já com o descartável rolando solto no ocidente. a riqueza da Terra é toda e principalmente do povo. não é recente a imagem de alimentos jogados fora por causa de baixo preço? isto é crime. TS os atletas são todos santos e a Olimpíada é sagrada; não blasfeme. Pense em três bolinhos de arroz, três pontos. bj.

Lygia Nery disse...

Foi mesmo um espetáculo de tirar o fôlego, à altura da nação chinesa!
A grandiosidade dessa cerimônia contribuiu para aumentar meus sentimentos paradoxais em relação à China: por um lado, respeito e admiro a cultura milenar, a tradição e engenhosidade desse povo; por outro, questiono procedimentos nada sábios, como essa febre de desenvolvimento a qualquer custo que põe em risco o planeta, assim como a mão de ferro com a qual cerceiam as liberdades individuais, a mesma mão de ferro com a qual mantém províncias que anseiam por autonomia e afirmação da própria identidade.
A China me parece um dragão ávido por devorar o que quer que passe pela frente, mesmo que seja a própria cauda.