29.9.08

Cidades Marrentas



(Cabe aqui uma nota de esclarecimento: Publiquei esta crônica num antigo blogue, e agora republico aqui, em versão mal revisada mas atualizada)
O ônibus
Em data recente, fui ao centro do Rio, onde compromissos adiáveis me esperavam, com ansiedade. Gosto de ir de metrô, mas, desta vez, resolvi pegar um ônibus. Tudo ia muito bem, trânsito livre, céu de brigadeiro, quando, eis que de repente num sinal alí perto do MAM, o motorista parou e desceu do ônibus, sem dar explicações aos passageiros e aos brados, passou a gritar com o motorista de um outro ônibus que estava logo atrás do nosso. Ninguém entendeu nada do que estava acontecendo ali, nas nossas fuças. Teve aquela reclamação que sempre ocorre nessa hora: - Vamos embora, motorista, que eu estou atrasado! Outros trocavam opiniões, uns defendendo, outros atacando o "piloto" que parecia enlouquecido e continuava a gritar: - Passa para frente, passa para frente! Vamos , ô cara, passa para frente!
Foi aí que eu me virei e verifiquei que o ônibus que era objeto do estado alterado do motorista era da mesma companhia. Não era nada pessoal e sim funcional. Entendi então que, o outro devia ser o veículo que deveria estar na frente, pois saira antes do ponto final, e o fiscal da empresa, que controla o tráfego, esperava a passagem dele antes do nosso .
Feita a manobra de passagem de um na frente do outro, o motorista voltou bufando como um búfalo e deixou escapar algo como: - Esse mané quer me prejudicar!!!
E então sairam os dois num pas des deux a transitar como dois bailarinos enlouquecidos , coladinhos , fazendo manobras arriscadas, bruscas freadas...Um estresse só , como disse uma passageira, que com muita dificuldade retocava a maquiagem...
Veio à minha mente perturbada uma cena de um verão dos infernos. Aconteceu na década de 80, fazia um calor de derreter catedrais (como disse o grande Nelson Rodrigues).
Lá perto da Central do Brasil o motorista parou o ônibus, que por sinal estava lotado e foi tranquilamente tomar uma laranjada num boteco.

A lanchonete
Minha mulher e eu fomos até Botafogo para uma consulta médica. Sabíamos que iria demorar, e para evitar aquela fome incômoda, que costuma pintar nessas horas, fomos fazer uma boquinha numa lanchonete, que estava cheia de gente. Todos na platéia assistindo uma cena interessantíssima : os três atendentes do outro lado do balcão entretidos em conversações ao telefone, um no fixo e os outros dois nos celulares, sem dar a mínima para os fregueses.
Uma graça! Esperamos uns longos quatro minutos, ninguém se mexia no local- quando o ponteiro estava ia se mover para o próximo minuto, mandamos a lanchonete para os "quintos dos infernos" e fomos para outra, onde nos esperavam esfihas e sucos deliosos.

Roma
Foi no fim dos anos 90. Estava com meu filho no Trastevere esperando um amigo uruguaio, Julio Lubetkin, que agita exposições de cartuns em toda região do Lazio. Ele viria nos apanhar em sua Fiat básica, e nela rumaríamos para a região dos Castelli Romani, onde parte da minha família se acomodou há alguns séculos.
Para ser mais preciso, o plano era chegar em Albano Laziale.

Isso me fez recordar uma lenda que o antropólogo inglês Sir James Frazer conta e que tinha por cenário o Lago Albano, onde havia um templo dedicado à Diana.
Ele narra um curioso ritual onde um sacerdote (o guardião da floresta) tomava conta de uma árvore - um carvalho no qual estaria o tal do ramo dourado. Ele não poderia vacilar na vigilância, pois sempre haveria um candidato ao seu posto. Para isso, o vestibulando precisaria matá-lo com um punhal. Tal história levou Frazer a escrever um longo tratado, de mais ou menos 12 volumes, que se tornou um clássico para o conhecimento das religiões. Trata-se de O ramo dourado (The golden bough).

Voltemos ao Trastevere. Enquanto meu amigo não chegava, de repente ouvimos o ruído de uma freada e, depois, uma voz esganiçada lançar vários impropérios no ar. Inclusive ''deficente'', que é mais do que xingar a mãe (e olhe que a mamma é uma instituição nacional, havendo até uma patologia chamada mammismo ,que inclusive acometeu o lendário bandido Giuliano, que botou banca nas montanhas da Sicília no começo do século, mas, no fundo, gostava do colinho da mamãe).

Pois bem. Procuramos saber de onde vinha aquele barraco, e eis que vemos uma velhinha de sombrinha na mão a espancar um carro do qual o motorista não saía de jeito nenhum. Meu filho sacou logo: ''Veja, meu pai... (ele adquiriu esse hábito de me chamar de meu pai depois que virou parisiense, (mon pére por supuesto es mucho comum). ''Esta é uma cena tipicamente italiana'' - ele disse. Eu diria que é uma cena tipicamente romana, pois, mais tarde, saberíamos pelo saudoso Araújo Netto que essa disputa entre os pedestres e os automóveis era uma característica da cidade eterna (Nota: para um jornalista brasileiro ir à Roma e não ver Araújo Netto e sua adorável mulher, Eunice, era a mesma coisa que não ver o Papa).

Ele nos disse também que o romano é muito parecido com o carioca, só que mais irônico e encrenqueiro. Como os cariocas, os descendentes de Rômulo e Remo enfrentam os automóveis, andam devagar, deixando para os motoristas a preocupação de frear. E reclamam quando quase são atropelados. Por sua vez, os pilotos são também espeloteados. Afinal, é a terra da Ferrari. Mas sabem também que em Roma a multa é pesada, e não tem o jeitinho brasileiro.

Exemplares são os franceses: basta o pedestre botar o pé na faixa que os motoristas freiam. Mesmo assim, um furgão de lavanderia passou por cima de Roland Barthes - o grande semiólogo francês - sem dar tempo para que ele interpretasse o significado dessa passagem.

Descobri outra coisa interessante na Itália: você pode arranjar uma briga e sair ileso (menos na Sicília e em Nápoles, que fazem parte de outro mundo). O máximo que pode acontecer é aprender um monte de palavrões. Nunca faça isso na Espanha, a não ser que queira parar de fumar. (Continua... Na próxima edição Nápoles e Cariocas são...)

2 comentários:

ze disse...

O lago Albano é impt na história de Camilo, general (romano)que junto com outros dois são citados por Durante, o Aleghiere, no 'da Monarquia', como os três italiotas principais. Dumézil, Georges, nos dias atuais, francês este, levanta a história toda : o fogo dentro d'água. 'a coisa' é hindu no fundo. felicidades.

LIBERATI disse...

Estes são os últimos traços de uma outra religião, (pagã por supeusto?) que mais tarde cederá terreno ao monopólio do cristianismo no Lazio.
Este ritual do "rei da floresta", da sucessão se dar por assassinato do "rei da floresta" é muito simbólico. Em Maquiavel, rei feliz é aquele que pode dormir. Os inimigos trabalham na sombra, e o rei que não detém o real poder sobre os seus guerreiros, pode acordar com a boca cheia de formiga. Nisto reside o poder: poder dormir em paz em seu reino e depois acordar. Frazer usa este exemplo de ritual sangrento para embasar sua hipótese de que todas as religiões tiveram em seus inícios, o sangue, o ritual sangrento, o sacrifício. Depois foram se "espiritualizando" com a adoção de rituais simbólicos, onde o sangue é substituido por vinho etc...não se sacrificam nem homens, nem animais e tudo passa a ser uma espécie de representação.
grande abraço