18.9.08

O Inferno Provisório de Luiz Ruffato


(Este texto de Jorge Sanglard (*) foi publicado no caderno EM Cultura do Estado de Minas no dia 18/09/2008)
Luiz Ruffato buscou inspiração no poema “Novíssimo Job”, de Murilo Mendes (1901 – 1975), ao estabelecer o título Inferno Provisório para a saga do proletariado brasileiro nos últimos 50 anos, que chega ao quarto volume com o lançamento de O livro das impossibilidades (Record). Ao articular em sua obra personagens da periferia da periferia, oriundas do Beco do Zé Pinto, em Cataguases, o escritor mineiro radicado em São Paulo transita num universo marcado pela diversidade das mazelas brasileiras, pela exclusão social, por remorsos e rancores, além da falta de perspectivas de uma vida melhor.
O poeta juizforano escreveu: “Prefiro o inferno definitivo que a dúvida provisória”, mas Ruffato trabalha com o sentido da utopia, garante que se não acreditasse em mudanças nem escreveria e optou por mergulhar na provisoriedade do inferno cotidiano para traçar os caminhos e os descaminhos de suas personagens nas últimas cinco décadas, enfrentando o processo de migração do interior rural mineiro para as cidades industriais de Minas, Rio e de São Paulo. Com seus sonhos e suas frustrações, suas lutas e suas derrotas pessoais; enfim, com todas as suas impossibilidades. E Rufatto constata: “Ousado e arriscado é ser pobre no Brasil”.
Dos retalhos de vidas malvividas, desiludidas, Ruffato tece um mosaico denso e vigoroso neste novo volume. O desafio de descrever seres humanos em sua complexidade é, para o escritor, o instrumento de uma reflexão sobre a precariedade da vida humana em qualquer circunstância. Ao inverter a máxima contida no verso de Murilo Mendes, o autor deixa claro que a opção foi possível por não se tratar de uma abordagem dentro do ambiente do catolicismo, mas sim de um mundo onde a própria religião está posta em questão. Na verdade, para Ruffato, o “Inferno Provisório” é a situação da própria sociedade brasileira contemporânea, fruto de sucessivos movimentos que nunca levaram em conta a valorização do indivíduo, ou o ponto de vista do cidadão.
O período escolhido para criar a sua visão desta saga do proletariado brasileiro, a partir da segunda metade do século XX, é exatamente o momento em que o país transita de uma sociedade semifeudal para uma sociedade pós-industrial de periferia. E todas as contradições desse processo refletem na busca de Ruffato pela expressão e pela explicitação de um ponto de vista a respeito dessa realidade. A partir de uma meticulosa recriação artística e da construção de uma prosa renovada, e evidenciando uma clara tomada de posição, o autor mostra que o compromisso de sua literatura é com a pura arte, mas focada continuamente na realidade que nos cerca e, às vezes, sufoca.
SONHO O sonho de abandonar a periferia da cidade pequena na perspectiva de melhorar de vida na grande cidade industrial permeia o cotidiano de cada personagem que, passado algum tempo, ao olhar para trás, se questiona ou se conforma a respeito das escolhas feitas ou desfeitas. Neste quarto volume, as personagens da saga transitam entre 1968, 1969, 1970, 1972, 1975, em meio ao endurecimento do regime militar, a conquista do tricampeonato mundial de futebol e a construção da Ponte Rio-Niterói. Avançam pela década de 1980 até chegar ao século 21, assombradas com a falta de esperança e de perspectivas. Fraquezas amargas, medos permanentes.
O livro das impossibilidades é articulado em três histórias, “Era uma vez”, “Carta a uma jovem senhora” e “Zezé & Dinim (sombras de um triunfo de ontem)”. A primeira passada entre Cataguases e São Paulo, a segunda, em São Paulo; e a terceira no eixo Rio – São Paulo – Cataguases. Luiz Ruffato reafirma o compromisso e a opção estética com a trilha estabelecida para a longa trajetória iniciada com Mamma, son tanto felice, desenvolvida em O Mundo Inimigo e em Vista parcial da noite, que chega, agora, ao quarto livro. O projeto prevê cinco volumes. “A literatura se faz pela subversão”, enfatiza ele. E provoca: “A literatura brasileira, em sua grande parte, sempre esteve ligada ao poder, à manutenção do poder”.
Periferia, centro da questão
Sem recorrer à forma usual do romance, nascido no século 18 para servir a uma descrição do mundo a partir dos interesses da burguesia, Luiz Ruffato se apropria de uma forma que, embora não esteja sendo inaugurada agora, serve aos seus propósitos literários. A forma fragmentada pode até não ser enquadrada nos padrões estéticos tradicionais como “romance”, mas também não é uma coletânea de contos. Enfim, o escritor subverte a forma e articula sua escrita ao inserir fragmentos e ao construir um texto instigante e que desafia o leitor à reflexão.
O novo romance proposto por Ruffato rompe limites e traz para o centro da questão a dramática vida cotidiana da periferia, dos sem voz e sem vez. Afinal, neste início de século 21 globalizado o que é centro e o que é periferia? A forma da ruína perpassa a construção dos quatro volumes. A questão da violência, que passou a incomodar a alta classe média nos últimos anos, segundo Ruffato sempre existiu com bastante clareza no país. Só não percebeu quem não quis. “Desde quando os portugueses chegaram ao Brasil, submetendo os índios à força, e mais tarde, com a introdução da escravatura na lavoura, a violência é parte do cotidiano brasileiro”, completa.
Por não encarnar o estereótipo do escritor brasileiro, branco, de classe média e bem educado, Ruffato vivenciou a necessidade de superar inúmeros desafios, como qualquer um que tenha nascido branco, mas na periferia da periferia. Diante da crueldade da sociedade brasileira, impermeável à mobilidade social, procura trazer sua experiência de vida para a literatura. Certamente, vem daí a força e a veracidade do que está retratado nos quatro volumes de Inferno Provisório.
(*) Jorge Sanglard é jornalista e pesquisador na área da cultura e da poesia Recentemente escreveu matéria sobre 80 anos de Macunaíma e o texto correu este vasto mundo e agora também está no seguinte endereço: www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=3498

2 comentários:

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
LIBERATI disse...

Fui obrigado a remover um comentário que não era comentário coisa nenhuma e sim uma publicidade, ou proposta indecente...