11.10.08

Um dia Um Gato


Não sei em que momento o pessoal da vizinhança começou a usar o nosso território como depósito de lixo. Era um terreno grande, um matagal repleto de pés de mamona - nosso material bélico que lançávamos com estilingues na turma da rua de baixo.

Eram inimigos sem rosto- tal como nas guerras dos adultos, que não conhecíamos a não ser no cinema -meninos como nós, que apenas nos atacavam, por uma questão de mera geografia e comportamento de bando. Eles eram os de baixo e nós os de cima na disputa por um dos lados de um vale. O curioso é que nós não sabíamos quem eram eles e eles não tinham a menor idéia de quem éramos nós. Se um dia algum dos nossos cruzasse o caminho de um deles, nas ruas do bairro, não haveria hostilidade, talvez apenas a distância natural. Eles só sabiam da nossa existência porque sempre estávamos alí no meio do matagal, sujos de terra, com o nariz escorrendo , calças curtas que exibiam joelhos feridos, pés descalços, facas de madeira, atadas ao corpo por barbantes que serviam de cinto, capaces feitos de cuia de coco e escudos de cascas de árvore. Ainda hoje, não consigo entender as razões que os levaram a tentar invadir nossos domínios. Na verdade, hoje considero que a reivindicação era justa. Aquele terreno era terra de ninguém. Fronteira de nada.

Mentira! Tínhamos um vizinho belicoso que possuia um belo pomar.Talvez por isso lutávamos tão bravamente. Lembro de um dia em que nossa vitória, por fim foi acachapante. Creio que conseguimos impor um certo respeito e temor nos adversários. Foi depois de uma renhida luta - afinal tínhamos uma farta munição - os maravilhosos cachos de mamona. Só não compreendo nosso ímpeto guerreiro- esse era tal, que não temíamos os projéteis dos inimigos. Não havia tática nem estratégia, só esconderijos que serviam de postos de ataque onde armazenávamos mamona suficiente para uma longa guerra. A inocência dessas batalhas estava numa certa ética, pois ninguém utilizava pedras - era só mamona mesmo. Quer dizer que entre mortos e feridos, salvaram-se todos. A posição conquistada, no entanto era instável. Sempre existia a possibilidade de um novo ataque.

Na nossa imaginação, era uma espécie de reino que defendíamos com as atiradeiras. Nele reinávamos , caçando passarinhos ou catando frutos no pomar que ficava na fronteira sul e era cercado com arame farpado e defendido por um homem mau feito um pica-pau que atirava na gente com espingarda de tiros de sal, que ardiam feito a peste. Existiam também disputas entre nós: uma vez limpamos uma área que virou ringue, com cordas e tudo, e assim foi organizado um torneio de boxe. Foi nele que arrumei dois dentes quebrados pelo Durva, e ele ficou com o olho roxo por alguns dias. Os dentes quebrados conservo até hoje. Não existia ainda a que mais tarde foi chamada de "matéria plástica" e os brinquedos eram feitos de madeira. Com ela eram esculpidos punhais que serviam para lutas ,que cessavam no instante em que o adversário imobilizado tinha a arma do vencedor encostada no coração o no pescoço. Nada de instintos homicidas, só importava o ato de medir forças e a excitação do risco do ferimento. Em outros momentos o pessoal saia na porrada mesmo. Éramos uns pobres galinhos de briga, uns aprendizes da barbárie.
Lembro do nomes de alguns desses camaradas de guerra: além do Durva, havia o Quinho,
o Nardo e seu irmão Dirço, Rafaelzinho, Bacalhau, Taíco, Fêu, Carlão e seu irmão Cucha que era pequenino, mas tinha um brother do meio que não me lembro mais o nome, e por fim o Mido que tinha por hábito ficar na sombra do poste quando o sol batia forte.
Parecia um mundo bastante amplo coberto de matas e árvores cheias de passarinho para abater.

Recentemente quando voltei a este lugar, encontrei prédios nos nossos domínios e tudo me pareceu pequeno. Como o tempo reduz as distâncias!
Nossa infância era um bairro cheio de terrenos baldios, que se esboçava na zona norte de São Paulo. Um bairro que descrevi como "operário", exercendo precocemente uma sociologia instintiva, que não sensibilizou a professora do primário. Ela me repreendeu e tascou um zero no meu dever, por não fazer uma descrição tal como uma gravura. Queria que eu tratasse apenas dos aspectos geográficos, captando somente a paisagem do lugar onde morava e não o lado humano.
Essa geografia eu exercitava no papel de pão com desenhos de cidades imaginárias feitos com um lápis Johann Faber nº2, e na prática, sumindo de casa- me embrenhando pela mata além dos limites, o que levava minha mãe ao desespero- principalemente quando fugia para tomar banho de bica na nascente de um rio.

Foi numa dessas expedições selvagens, que me vi no meio do nossa praça de guerra , a caçar novidade, revolvia a terra com as mãos e eis que apareceu um rabo de um gato. Pensei que estivesse vivo, e quis fazer graça puxando com força aquela cauda oferecida. Queria dar um susto no bicho. E quem acabou com os cabelos em pé, fui eu. Não , ele não me atacou com a agilidade natural dos felinos - pelo eriçado e bote certeiro, mas ao contrário, sem nenhuma resistência, deixou que rabo se desprendesse e ficasse colado na minha mão - a sensação que tive foi de espanto e nojo. Não tinha nenhum cheiro, só o contato das mãos com aquela parte morta. Larguei aquilo e saí correndo... A experiência da decomposição até hoje me impressiona. A morte já era minha velha conhecida. Vi vários frangos serem abatidos lá em casa, mas aquilo era para comer- o bicho pingando o sangue na panela para fazer ao molho pardo... De outra feita vi um bode sem cabeça a caminhar pela rua de terra, o sangue jorrando a deixar um rastro molhado na poeira. O bicho tinha escapado das mãos do seu Taíde, que resolvera fazer uma buchada, o curioso é que o bodinho caminhou uns bons metros, e pensei se aquele movimento também existia na parte separada, a cabeça que distante talvez berrasse seu béé final. Mas essas mortes pareciam naturais, se encaixavam numa ordem lógica das coisas. Quando sêo Eustáquio matava porco que guinchava , eu só sentia dó. Mesmo quando o pessoal da rua fez uma vaquinha e comprou um boi velho e sangrou o animal numa festa, na qual me foi oferecido um caneco cheio de sangue - que não consegui tomar - eu não achei estranho. Mas com o rabo do gato foi diferente. Talvez alí, o horror apenas tivesse se esboçado, ou seria o absurdo? Um rabo sem gato! Sai pra lá, sô!

4 comentários:

ze disse...

esta crônica está boa : quanto sangue! acho que tens o instinto da pessoa verde que busca a mata e a floresta. e ho-je?

LIBERATI disse...

O sangue é sempre dos animais. As crianças não são violentas, elas tem muita energia. Hoje a criançada vive experiências manipulando videogames, jogando bolinha de gude no carpete, soltando pipa no ventilador. As matas estão perigosas, cheias de serial killers, maníacos dos parques e jardins, pedófilos e outros sujeitos da sociedade criminal. Não existe mais várzea para o bom futebol de bairro. Tudo é cimento. No Rio ainda tem a praia - essa democracia da areia. E tem o sol que ainda não privatizaram.
Abraços

ze disse...

os prédios privados fazem sombra na rua. lembra Drummond falando do asfalto cobrindo a terra - com paralelepipedo no meio ? o pé no chão troca energia com a Gaia da qual Boff tanto fala. é questão de energia. água clorada não é água límpida. leite em pó não é leite da vaca. e por aí vai.

LIBERATI disse...

É a velha questão da representacão?
A aparência, o é que não é?
grande amplexo