30.10.08

Vale a pena ler de novo : Ella cantaba boleros


(Não sei se já publiquei ou republiquei esta crônica aqui. Faço isto hoje porque encontrei meu amigo Egeu, um grande designer e pesquisador que está fascinado por Cabrera Infante e de modo especial pela cantante- que encantou o escritor cubano e que a fez viver eternamente num capítulo de um livro seu chamado "Três Tristes Tigres". Conversa vai, conversa vem, emprestei meu exemplar de "Três Tristes Tigres" (traduzido de forma magistral por Stella Leonardos e com capa do genial artista plástico Carlos Clémen) e ele me revelou um achado que permite ao navegante amigo ouvir a voz desta misteriosa mulher. Meu filho, por sua vez, cirurgião e pesquisador e também "cabrerista" de carteirinha me revelou outro que vou botar no fim do texto- um site que trabalha sua biografia)

Hoje quero lembrar do esquecimento, se me permitem brincar com oxímoros.
Esquecer, sem dúvida é muito melhor do que ser esquecido. A história está repleta de cadáveres ilustres que são içados da vala comum dos olvidados como é o caso de Bach.(disso nós trataremos em outra croniqueta)
Por hora vamos nos concentrar em “Freddy”. Seu nome real era Fredesvinda Garcia,vivia como empregada doméstica nas casas da alta classe-média do Vedado. Na ficção de Guillermo Cabrera Infante ela é “La Estrella Rodríguez”, cantora mulata de impressionante massa corporal e vocal. Pertenceu a uma cidade que é matéria de memória do autor de “Havana para um Infante Defunto” que a continua reconstruindo no livro “Três tristes tigres”. Seu tempo é o período que se situa entre a ditadura de Fulgêncio Batista e os primeiros anos da Revolução Cubana. Ela cantava boleros a capela, dispensava a orquestra, era um edifício cantante que circulava em cabarés de segunda e quando conseguiu sair da penumbra não demorou muito sob as luzes do palco junto com uma orquestra que a obrigaram aturar. Dizem que morreu aos 30 anos de indigestão no México ou em San Juan de Porto Rico onde fazia uma turnê. Gravou um único disco que Cabrera diz ser meio “sujo” já que não deixa curtir sua somente sua voz.
Pois bem, no meio de seu livro excepcional, a morte de “La Estrella” é comentada por uma dos personagens que compõe o romance (um dos alter-egos do autor). Ele diz que logo a cantora seria esquecida :- “E queriam despachá-la como carga comum e da companhia de aviação disseram que o ataúde não era carga comum, mas transporte extraordinário e então quiseram metê-la num caixote com gelo seco e trazê-la como se leva lagostas a Miami e seus fiéis servidores protestaram furiosos por esse último ultraje e finalmente a deixaram no México e lá está enterrada. Não sei se este último embrulho é certo ou falso, o que é verdade sim é que está morta e que em breve ninguém se lembrará dela e estava bem viva quando a conheci e agora daquele monstro humano, daquela vitalidade enorme, daquela personalidade única não resta mais do que um esqueleto, igual a centenas, milhares, milhões de esqueletos falsos e verdadeiros que há nesse país povoado de esqueletos que é o México”…e lamenta:-“a única coisa que tenho ódio mortal é o esquecimento” –“Mas nem sequer posso fazer nada, porque a vida continua”. No bolero que leva o nome de Freddy, ela diz com sua voz de veludo:- "Soy una mujer que canta para mitigar las penas de las horas vividas y perdidas".
Pois é a vida continua em todos os fusos horários e o show não pode parar. Como diz diz o locutor esportivo, o tempo passa. Tem gente que quer viver tudo aqui e agora, num gozo despreocupado, sem se importar com nada e mais tarde talvez vá se lembrar , terá um baú de doces recordações, uns vão querer esquecer seu passado, como alguns presidentes da república, outros vão desejar sempre o futuro e seu mistério… Mas quer queiramos ou não o tempo é inapreensível. Escorre pelas mãos como na música pop ou como areia ou evapora feito água no deserto .Tudo retorna ao pó, não o que nos sufoca com sua violência, mas as eternas areias que estão em toda a parte como num livro de Borges, o eterno e infinito labirinto do deserto e no final serão sopradas pelos ventos atômicos… Meu Deus, afastai de mim esse sêo João e seu apocalypse now…
***
O que me trouxe de volta à uma pequena felicidade que me fez reescrever esta croniqueta foi perceber mais tarde que Cabrera Infante apesar de se equivocar a respeito dos "concertos de Branderburgo" que confundiu com “Variações Goldberg”(explico isso em outra hora) e de não citar J.D.Salinger num ensaio sobre a "História do Conto", criou em torno de “La Estrella” uma curiosidade e desta maneira trouxe Fredesvinda García de novo a tona na geléia da memória. Constatei isso na internet, algumas pessoas falavam do livro de Infante e a respeito de “Freddy”. Finalmente descobri o tesouro: existia na Amazon o CD onde está registrada a sua famosa gravação com o nome de “Ella cantaba boleros”. Escutei alguns trechos que são oferecidos como amostras, sua voz realmente era assombrosa. Pedi à minha filha o CD de aniversário,no ano passado, ela tratou de encomendar à Amazon. Como num passe de mágica a internet quase se tornou neste momento “eternete”, bem ao gosto de Cabrera-enfant-terrible . Mas a Amazon não mandou o CD,ou se mandou, se perdeu no correio.Depois de uma longa batalha na qual rolou uma troca de e-mails surrealistas até com o fornecedor da loja virtual que disse que não mandaria nada porque tinha esgotado o prazo, minha filha desistiu, com justissima razão. Fica aqui meu protesto. Mas sou um infante terrible não como Cabrera, mas cabreiro, procurei no sítio da “Modern Sound” na madrugada de sexta-feira para sábado e lá me informaram que existia um único exemplar no estabelecimento. Mal o dia nasceu e eu corri para a loja lá na Barata Ribeiro. O vendedor, gente finíssima, procurou e não achou o disco pelo título “Ella cantaba boleros”(que é o título que consta da Amazon), mas me perguntou pelo nome da cantora. Eu disse : -“FREDDY”. E eis que, como num milagre de Santa Virgen del Cobre ele sacou um CD da prateleira das cantoras latinas. Tinha por título “La Voz del sentimiento” que era o nome original da gravação cubana. Lá estava “ella” acompanhada por la Orquestra de Humberto Suárez cantando todos os boleros. (Ella cantaba boleros é o nome de um dos capítulos recorrentes de Três Tristes Tigres)
Os responsáveis por este brinde que encontrei na "Modern Sound" são franceses do selo Mélodie. Esse pessoal genial teve a sensibilidade de graver essa raridade. Vive la France! Viva Cabrera Infante! Viva Cuba! Viva Freddy! Passei o final de semana inteiro ouvindo Freddy, Fredesvinda, semprebemvindagarciagracias.
Nota do Editor: O site onde você pode ouvir o único trabalho registrado por Fredesvinda é http://archivodeconnie.annaillustration.com/?p=205 . Nele além dessa preciosidade, tem muitos depoimentos de gente que a viu ou está interessado nela. O site também tem muitas informações visuais e textos que lembram Cuba dos anos 60 e 70. Há um outro escrito em francês , onde pode conferir sua biografia e fotos dela - coisa rara. Seu endereço é:http://www.montunocubano.com/Tumbao/biographies/freddy%20garcia.htm

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