19.12.08

Crônica da Tinê - De Alma Lavada



Em memória de J.A.K.

Alto, branquelo, olhos negros, barbado, pouca fala e sorriso franco, de uns trinta anos.
Franzino, mestiço, olhos vivos, tagarela em dialeto de rua, um pouco menos de doze anos.
Informal, o rapaz gostava de jeans e camiseta mas ia trabalhar engravatado no centro financeiro do Rio, onde estacionava o carro próximo à avenida Antônio Carlos.
Esperto, o menino vinha de algum lugar, não se sabe se de Niterói ou dos lados da Gamboa, de camisa e sapatos furados, uns trapos e escova num balde de lata que ele guardava no buraco de um muro de seu “ponto”.
O rapaz e o menino se cumprimentavam todas as manhãs, de segunda à sexta. Uma relação gentil entre cliente e prestador de serviço. Um deixava o carro, apressado. O outro cuidava do carro, dedicado. Quando aquele viajava a negócios, ao retornar recebia deste um sorriso ansioso pela espera, infantil. A conversa entre ambos se limitava ao carro e às gorjetas. Foram quase oito meses nessa camaradagem, e faltavam uns dez dias para o Natal.
Era época de HANUKÁ, a Festa das Luzes judaica que costuma coincidir com a festa dos cristãos - em ambas há ceia especial e as crianças ganham presentes. Um atendia pelo diminutivo Aby. Ele era judeu, não tinha filhos nem sobrinhos, então o frenesi consumista de fim de ano não afetou sua rotina. Do outro soube apenas o apelido: Dicó. Era um filho ao Deus-dará que conhecia as promessas celestiais pelos televisores ligados o dia inteiro nas vitrines.

Num fim de dia Aby viu Dicó sentado no chão, encostado no carro, cabeça baixa. Ao se aproximar preocupado, o outro rápido se levantou, sacudiu o pó das calças e estendeu as mãos em concha: --- É pro senhor. Feliz Natal!
Atônito, Aby emudeceu. Ficou parado, olhava as mãos um pouco sujas. Sorridente, o menino insistiu – abre, abre! Aby pegou o embrulhinho feito com papel já usado, enfeitado, amarrado em laço com barbante bicolor de padaria, abriu-o devagar e... --- Um sabonete GESSY!
Encabulado, Aby agradeceu e partiu. Ele foi correndo contar à amiga que contou para a família que contou aos amigos que contaram para todo mundo, enquanto se aconselhava sobre como retribuir ao seu dadivoso flanelinha. “Um brinquedo”, “Tênis novos”, “Mantimentos”, “Dinheiro”, “De tudo, um pouco”. Não sei qual foi o presente de Natal que o menino recebeu. Sei que Aby morreu em acidente de carro quase três anos após aquele encontro. Dicó hoje beira os trinta anos e é servente numa repartição pública em Andaraí.
Tinê Soares – 08/12/2008

4 comentários:

ze disse...

ai, que dor! é pra doer e chorar? IHS no Evangelho de João aparece comemorando o Natal às portas do Templo de Salomão, o que sobrara dela. o sol-stício é a porta do céu. chaminé de Noel. ai que dor!

Anônimo disse...

Pelo final do texto percebe-se qual foi o presente. Legal. E pensar que naquela época rimos da situação, alguns pobres de espírito ainda ridicularizaram o episódio enquanto outros viram a riqueza do gesto. Não precisa ser Noel, basta ter coração.
M.R.L.

Anônimo disse...

Menina, v. escreveu um conto que no início nos dá a sensação de "Final Feliz" ou uma mensagem destas "otimistas de jogar qq um pra cima". Mas v. foi direta, como a realidade. Sem fantasias, mas nos deixando aqui com a imaginação a mil. Aby, com certeza, teve o que nunca imaginou na vida antes de partir. E deve ter partido feliz. O menino é a própria mensagem de paz, de fidelidade (que palavrinha rara....), de sabedoria. Acho que estou sendo meio incoerente neste comentário (rs), mas não vou consertar. Afinal, foi culpa sua embananar minha cabeça (rsrsrs). E por isso mesmo, adorei! Beijos grandes.

Lygia Nery disse...

Li essa crônica há mais de um mês e fiquei muda, com um nó na garganta... Só hoje venho revelar a minha comoção, mas sem entrar em detalhes para não marejar os olhos.