18.12.08

Des-conto de Natal


(Não aprecio o Natal, acho uma data cruel. Uns com seus presentes, suas árvores enfeitadas, outros sem nada, ou, com uma besteirinha.
Sempre falta alguém na mesa. No fundo é uma data triste. Tudo é postiço, um velho de barbas brancas vestido de vermelho num calor de 40 graus defende o seu, e tem ainda que fazer Ho Ho Ho...Por outro lado, comemora-se o dia em que um menino nasceu, já inscrito numa história que, passados 33 anos, terminará com sua morte na cruz, depois de um longo suplício. E por que isso? Para nos salvar, dizem.
Não discuto religião, quem quiser que acredite no que bem entender. Por essas e outras sempre procuro escrever um conto de natal. Um conto sujo...O tema deste que publico hoje, veio de um causo que ouvi, faz muito tempo, de uma época em que se amarrava cachorro com linguiça
).

Mudar até que passava, entre nuvens pesadas que fizeram morada sobre sua cabeça durante aquela semana. Uma certeza: o mundo não tinha jeito, e ele sem futuro nele . Nem queria pensar. Sem mais nem menos um vento forte varria tudo e só deixava uma coisa que nem sabia ser desespero.
Não viera de nenhum oco do mundo, cheio de esperança de ganhar algum na cidade. Era dali mesmo. Não carregava passado de seca e aquela coisa toda de retirante. Só uma montoeira de imagens, uma chuva de relâmpagos, um raio torrando tudo, os trecos do barraco queimando, o valão levando o pouco que tinham, irmãos indo embora, a mãe chorando- pai que nunca viu- a mãe morrendo... Agora tudo cinza- queria é esquecer.
Ler até que lia, aprendera as primeiras letras numa escolinha antes do desastre e a fuga. Depois ganhou mais esperteza nas contas com uma enfermeira do abrigo. O pulmão fraquejou- tossiu a alma- antibiótico fez a coisa cicatrizar. Desse tempo tem uma lembrança- um livro de um russo que o médico deu a ele . No entanto não gostava nem de pegar nesse traste que falava de u'a mãe cheia de coragem por lembrar a sua que não mais existia nesse mundo. Ensebado, folhas caindo, não imaginava porque ainda conservava o livro entre suas poucas coisas dentro de uma caixa de sapato. O que importava é que não se sentia estrangeiro em um país árabe como Elésia - sua companheira de calçada e que abrigava seu fogo morto de macho. Elésia, calada tinha mundo próprio- uma ilha- onde passava o dia com olhar perdido no asfalto , seu mar insondável.
Fome não passava, pegara confiança de um italiano que o botara para retirar cascalhos da obra da loja de sucos. Se achava servente de pedreiro. Mas nada de prato-feito, era sobra da cozinha que ele recolhia num saco plástico. Elésia passava e levava o dela para mais adiante comer com a mão mesmo. Salgadinhos de vez em quando engorduravam a noite: risole, quibe, coxinha- tudo frio.

Frio dividiam os dois, alí perto, na calçada da faculdade de direito, onde tinham lugar cativo entre os outros moradores de rua. Falavam pouco, uns diziam coisas sozinhos embalados na fumaça do crack. O sono era ativo, um olho dormindo, o outro caçando vagabundo - tinha uma faca na mão direita sempre pronta.

Banho tomava na obra, Elésia se lavava no chafariz da Praça com sabonete e" xampu "- um luxo que ele sustentava, na boa.

Dinheiro - merreca guardava no fundo do tênis forrado de jornal. Na hora de dormir enfiava numa faixa amarrada na cintura.

Antes de se recolher ficava zanzando pela cidade vendo ratos espantar travestis e as meninas quase nuas que faziam viração na Praça. Era sua diversão, melhor que os programas mudos de TV da grande loja que Elésia via até fechar.

Nem pensava em mudar aquilo que era sua vida. Na verdade não podia. Quem sabe para o ano o italiano empregasse ele para o "anexo" que estava em obras. Podia pegar serviço de restaurante, servir mesa- gorjeta- mais comida. Emprego aí devia ter, não é não?! Mas não pensava isso no todo, a idéia só rabiscava na confusão da rua e no peso do carrinho de entulho, na subida da alameda até o latão da municipalidade. Só o desespero ficava inquilino.

Muitas vezes, pensava que era um nada, media o tamanho dos prédios, por trás dos muros as casas bonitas. Se comparava.

Uma perturbação confundia sua cabeça: Nada era o parar de tudo, não é isso? Mas, mesmo tudo parando, ainda restava alguma coisa. Era preciso não sentir. Aí sim seria nada! Mas ele ainda era um corpo dolorido , o coração arrebentando no batidão da subida da rampa- he he ! - Então era ainda alguma coisa, amigão! Um nada... idéía mais besta!

A prefeitura naquele ano resolveu enfeitar a Praça , para o natal. Botou no laguinho um casal de cisnes e seus filhotes, que viraram atração com seus passeios em fila indiana, serpenteando. De dia era uma alegria, uma outra vida vivia aquele lugar. Crianças paravam no caminho para a escola. De noite tudo mudava, apesar das luzinhas pisca-pisca, morcegos adejavam e as baratas saiam a procura de restos humanos. A guarda passava de hora em hora para botar moral na saliência- carrão do ano parando, gente fina querendo programa - homem se aliviando em homem- mulher da vida no vaievém, zoação madrugada adentro.

Não se deu conta, e uma festa foi sitiando a cidade - a grande loja botou um boneco de papai noel e enfeites na fachada. Nas TVs era um festival de sinos, fitas coloridas, estrelinhas, crianças sorrindo, artistas de branco cantando. Aparecia comida também nas telinhas, e os preços brilhavam - perus assados, salame, presunto, uvas...O mundo ficava bonito, derrepente.

Um dia ele disse a Elésia, que sabia preparar galinha com o cozinheiro da loja de sucos. Ali perto tinha uma feira , a xepa era boa, e sem reparar, a mulher passou a pegar alhos, cebolas, coentro, salsinha, limão, até um punhado de pimenta. Socava ervas num vidro de maionese, botava sal e azeite que ele trazia encolha, quando voltava do trabalho.
A idéia tinha suas complicações.Juntando todo dinheiro que tinham, dava para comprar um frangão duro do "frizi" no supermercado. O problema era o que fazer com ele? Um jeito dariam naquilo,
O que não se deram conta é que segredo é de todo mundo quando se mora na rua, a intimidade galinácea deles acabou se espalhando. A imaginação que era muito prática ali, tomou conta do dormitório a céu aberto da faculdade de direito: - Iriam fazer uma ceia de natal como os grandes. E não teve jeito de mudar o desenho da coisa, a arraia miúda fez crescer a despensa, a animação corria solta, doideira anunciada. O plano era simples. Nada de gula, tudo sendo guardado para o grande dia. A coleta corria solta, batatas , aipim, cenoura, inhame, bananas de montão e mais farinhas, a mistura ia ser boa...só faltava pegar o prato principal e arranjar um mocó para malocar as coisas e fazer o rango. Um olho cego disse saber de uma mulher que no meio de um viaduto tinha montado cozinha com fogão de botijão e tudo.
Foram falar com ela que concordou - e não tinha como não - era muita gente e o medo deu o bom conselho.
Indagou: - Mas ceia de natal só com um frangão com apito será que dava para todos? Em todo caso, lá foi ele, duro de gelo, ficou vertendo água - tinha muito pirão e pouco peixe naquela parada.

No dia de natal tudo aconteceu combinado- mal anoiteceu - Olho cego, que estava na vigia na Praça deu o sinal, a guarda tinha ido pra casa festejar. Não passava nem táxi na avenida, os habitantes noturnos da Praça - menos os ratos, os morcegos e as baratas - também tinham família para se juntar. Então, meia dúzia de sombras decididas entrou no laguinho - ele na frente - comandando. Foi aí que olhou no olho do cisne-pai assustado e os filhotes escondidos atrás da mãe - ele - faísca- mandou tudo parar, e teve nego que reclamou mas tomou catiripapo. Ele era só dentes cerrados, uma fera. Não iriam matar os bichos. Não iriam pegar os patos, os patinhos, torcer a goela e meter num saco. E não teve conversa- ele era forte de subir ladeira com entulho e os outros, mendigos de esmola - fracotes, não arriscaram enfrentar porrada e tinha aquela faca na mão dele que indicava o caminho.
Sem mais mais, deu-se a debandada, iam de cabeça baixa. Chegaram ao mocó sem festa, parecia dia de enterro. O riso das mulheres se desmanchou. Um caldeirão fervia- na espera de depenar e mergulhar no tempero. Ele tomou a palavra e falou que não teve coragem. Contou que viu uma lágrima no olho do bicho - os filhotes se escondendo... engasgou e não disse mais nada.
Elésia vendo a tristeza em todas aquelas caras, saiu de sua ilha, atravessou seu oceano de solidão e gritou: - A gente divide- carne é pouca - todo mundo vai comer. E foi assim que o frangão degelado seguiu as preparações dos que foram poupados. Meia - noite tudo estava pronto. Comeram aquele único bicho, que deve ter chorado também na hora do abate. Foi traçado em iscas,com arroz e as guarnições todas abundantes. Tinha até Sidra e copos plásticos - quase uma ceia de Natal nos conformes . Elésia nessa noite nem vomitou. Só faltou nevar.

6 comentários:

Anônimo disse...

Toda história triste tem seu ponto de luz; Natal é confraternização, é o 'caritas' que brota naturalmente pelas criaturas - não é a enfeitada festa recheada de guloseimas!
A Luz neste cenário sórdido veio através dos cisnes, mesmo que as pessoas não tivessem ao menos uma festa bonita da infância para povoar a memória durante os tempos mais difíceis.
Feliz Natal!
Tinê.

LIBERATI disse...

Você tem razão, querida Tinê, neste conto acabou que teve uma possiblidade de redenção na humanidade do personagem sem nome que impede o sacrifício dos cisnes.
Feliz tudo!
bjs

ze disse...

tem tudo a ver o natal ser assim uma festa dos pobres - afinal José e Maria ficaram na estrebaria, na palha, pois não havia lugar no mundo para eles. Natal é festa de Pobres. Natal rico não é Natal. A história está perfeita. 'O mundo não conhece a verdade' e nem a recebeu para nascer há 2008 anos atrás. felicidades.

LIBERATI disse...

Caro Ze, é isso aí, natal é festa dos que não tem lugar e encontram a humanidade.
um abraço,
Feliz tudo

Anônimo disse...

feliz tudo!

bravo bruno!

LIBERATI disse...

Carissimus Guilherme, felice tutto!... ou tutto felice!
grande abraço