5.1.09

A tragédia de um homem bom


Confesso que fui ver o filme Um homem bom (Good) com uma certa reserva: - Viggo Mortensen no papel principal! Mas quebrei a cara, ou melhor metade da cara. Explico: O trem da fita Um homem bom do brasileiro Vicente Amorim (*) (adaptação da peça de teatro de Cecil Philip Taylor) passa a quilômetros de distância do livro Auto de Fé de Elias Canetti . Mas tem algumas coisas em comum, ou seja:um homem de livros, o fogo, - que são os principais personagens dessa obra terrível (no bom sentido) do escritor búlgaro.
Canetti cansou de dizer que um fato marcou para sempre sua vida e fez com que ele dedicasse longos anos para compor uma obra que, de certa forma, expressa seu estranhamento diante de um fato- um acontecimento público que o fez mergulhar de cabeça na massa. Foi no dia 15 de julho de 1927 em que aconteceu uma manifestação que tomou a toda cidade de Viena e acabou com o incêndio do Palácio da Justiça . A polícia não hesitou em atirar contra a massa e nessa época não existiam balas de borracha. Morreu muita gente. Canetti notou porém um homem que - aparentemente alheio no meio da multidão em fúria erguia as mãos para o céu e gritava : "- Os arquivos estão queimando! Todos os arquivos!" Este episódio da alienação deste homem que se preocupava com os papéis enquanto gente morria abatida a tiros e o fato todo da sua imersão embriagada na massa seriam taduzidas muito mais tarde em dois livros, Massa e Poder (um ensaio fabuloso) e Auto de Fé - que fala do personagem Kien- um sinólogo- que é um homem de livros - um ser obcecado por obras e temas superiores do espírito e que não se importa com mais nada. É um pouco o caso do personagem John Halder, do filme, uma alemão "incomum". Halder, na verdade, quer ficar longe de tudo que o cerca - ele cuida de uma mãe doente, uma mulher maníaca que toca piano sem parar- desesperadamente e dois filhos. Observa com um princípio de indignação - logo calada por uma voz que o intimida- a queima de livros que ocorre na universidade onde dá aulas de literatura. A Alemanha vivia os momentos "felizes" do regime nazista onde se misturavam flores, ginástica e marchas com a queima das idéias contrárias. Seu refúgio é seu escritório onde compõe um romance cujo componente "eutanásia" que vai determinar sua vida de forma a se comprometer, sem querer, com a alta cúpula nazista. No meio dessa encrenca ele encontra uma jovem aluna "chave de cadeia" que aparentemente dá a ele um pouco de prazer. Ele - que tem horror às massas , também é envolvido por elas com a ajudinha da moça que parece ser boa de lábia. Como Kien ele estabelece relações com uma mulher terrível ( no caso do personagem de Canetti Therése é uma velha governanta que só quer saber de dinheiro - no caso do professor John Halder , é uma garota deslumbrada com a ascenção do nazismo). Não vou contar o resto do filme para não estragar o prazer do leitor.
Não é um filme ruim mas não chega a ser uma obra- prima. Dá para o gasto, e consegue leva o espectador para dentro do clima contraditório de uma Alemanha que se mostra inocente ainda ao desconhecer as pequenas monstruosidades que foram ocupando territórios até só restar o horror. Um dos seus méritos é não utilizar o esterótipo do oficial nazista malvado. Todos são ou muito simplórios, otimistas homicidas ou vítimas de uma ambiguidade entre medo e exaltação. É muito interessante notar que em determinadas épocas históricas, ser inocente pode ser um crime hediondo.Em determinados momentos é difícil ser herói como lembra muito bem a letra de Aldir Blanc na voz de João Bosco:"Ah, como é difícil tornar-se herói
Só quem tentou sabe como dói vencer Satã só com orações
." Lembro também de um ditado indígena americano que diz que "é fácil ser herói à distância". Lá no meio do contubérnio nazi-fascista era mais difícil ainda. Que o diga o amigo judeu de John Halder, que vai colocá-lo frente ao problema de sua até então "inocente" adesão involuntária ao nazismo. No caso do professor John Halder, o destino o amarra de tal forma que ele não consegue esboçar um gesto para se desvincular, só resta ser testemunha muda da barbárie e mais do que isto, da união da perversidade e do sublime que eles conseguem e que se revela na cena mais impactante do filme. O desempenho de Viggo Mortensen como um patético professor racionalista no ninho de cobras (irracional) nazista é algo que surpreende. Quem o viu no remake de Vanishing Point de 1997 no papel de Jimmy Kowalski vai comparar e ver que o cara evoluiu pra dedéu.
Talvez nas mãos de István Szabó que fez o magnífico Mephisto (baseado no romance de Klaus Mann - com roteiro de Péter Dobai ) esse filme atingiria uma outra densidade,(uma outra qualidade dramática), mas como já disse, com certas limitações,ele consegue dar o seu recado e fazer compreender a complexidade do tema. Em outra palvras, Um homem bom é um filme bom.
(*)Vicente Amorim fez em 2003 o excelente filme O Caminho das Nuvens Sua carreira no entanto já vinha se estruturando quando participou em Luar sobre Parador como assistente de Paul Mazursky em 1987 e em 1990 trabalhou com de Hector Babenco em Brincando nos Campos do Senhor também como assistente. O cara entende do riscado e estreou bem no mercado internacional com esse Um homem bom

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