3.4.09

Conto da Tinê : Em nome do ofício



Neto de relojoeiro, único filho sobrevivente, cresceu na modesta alfaiataria do pai. No sobe e desce agulha, carretéis de cores várias giravam horas a fio.
Menino gosta de desmontar e remontar relógio. Aquele, não. O som das horas era monótono, não tinha o farfalhar do pano que deslizava na esteira metálica junto à batida surda das roldanas; não tinha a variação rítmica entre o chuleado e o ziguezague; não tinha o ranger do pedal com óleo gasto, nem o baque da manivela que parava abrupta quando o fio arrebentava e exigia uma pausa para o acerto, e novo impulso era dado com o pé para o concerto sem pífano, rabeca e bumbo recomeçar na cabeça do garoto. O fascínio estava na relação das peças do objeto que acompanhou o rapaz a vida inteira. Para estranheza de alguns, ele pontuou em carreira própria. Fez curso técnico e trabalhou em montadora de máquina de costura até se aposentar. Ponto firme, ponto frouxo, casou com a filha de um sapateiro. Seu primeiro filho foi Elgino, seguido de mais quatro: Elginete, Elginaldo, e as gêmeas Elgineide e Elginácia.
A cada tique-taque se somam os pontos dos passos até desenhar o caminho. E foi assim que uma bisneta de relojoeiro, neta de alfaiate e filha de mecânico se casou com um telegrafista. Mensagens correram o mundo através de pontos e traços, em harmonioso caseado! Em homenagem a Samuel Finley Breese Morse, o casal batizou os cinco filhos de...
*********************************
Tinê Soares – 10/03/2009

11 comentários:

ze disse...

creio ser tudo verdade. a alienação dos meios de produção retirou do trabalhador seu ofício que antes mexia a economia. ho-je o trabalhador não tem mais seu instrumento de trabalho. aliena o trabalho e assim é explorado.

Anônimo disse...

As entrelinhas formam a pauta musical.
Tem tres modos de nomear os filhos.
Morse fundou a Academia Nacional de Design nos E.Unidos.
M.R.L.

sara disse...

q bacana...
deu vontade de batucar!!!

EHofmann disse...

Conheci tres irmas chinesas
ai-kim, ai-lim e ai-pim.
Minha avo conheceu um que se chamava Rolando..Rolemberg..Bhering.......(caiu)!

Elaine de Amorim disse...

De Samuel e de Morse, por suposto!

Elaine de Amorim disse...

De Samuel e de Morse, por suposto!

josemauros disse...

hummm me fez lembrar da Singer da minha mãe... e do cheirinho do óleo com que ela lubrificava cada peça. Hoje ela tem uma bem diferente, digamos automática, mas eu nao esqueci do cheiro do óleo.

Ed disse...

Irresisitível. E o ze colocou bem sobre o processo d eindustrialização e despersonificação das pessoas. Mas por outro lado, me lembro de quando cobria botões na maquina de uma tia do interior que não era costureira: cobria botões. Que delícia! A Singer já me lembra minha avó: esta sim uma excelente costureira e agora estou vendo ela a pedalar a máquina :) Bjão.

LIBERATI disse...

Querida Tinê, minha mãe que ontem fez 88 anos - costurou boa parte da vida dela numa Singer que está lá na casa dela inteira. Com essa máquina ela ajudou a nos criar para esse mundão.
Belo conto, curto e fino.
bjs

Marcus disse...

Que conto mais lindo e delicado ... Existe uma cadência de imagens e sons ocultos lindíssimos ... parabéns Tinê.

Lygia Nery disse...

Contemplando as gerações nesse seu bordado com linha, ponto e contraponto perfeitos, fiquei pensando nessas profissões todas em vias de extinção ou já extintas. As tecnologias obsoletas parecem ruínas na cultura contemporânea, com tudo o que isso traz de melancolia e fascínio.
Quanto aos nomes dos filhos do telegrafista, tomara fossem nomes normais, como Maria, Pedro, Teresa, João e Paulo. Afinal, ninguém merece carregar o estigma de um nome estranho para o resto da vida...!