16.7.09

Roberto Piva: a vida iluminada pelo verbo


(Roberto Piva, grande poeta brasiliano foi meu contemporâneo na Escola de Sociologia e Política de São Paulo - Me lembro bem de sua figura agitada falando de Nietzsche, política e poesia, uma figuraça! Quando vi esta entrevista feita por Marco Vasques(*) no bravo site ViaPolítica, editado pelo meu querido amigo Omar L. de Barros Filho e por Sylvia Bojunga, não tive dúvidas, solicitei autorização para republicar aqui)

Roberto Piva é uma das figuras centrais da poesia brasileira. Em torno de 1960 um grupo de poetas amigos (Claudio Willer, Rodrigo de Haro, Bicelli, Sérgio Lima, De Franceschi e Roberto Piva) se reunia para ler poemas, ouvir música… Esse grupo provocou uma releitura do modernismo, a reafirmação do surrealismo e, sobretudo, introduziu a beat generation nas rodas literárias brasileiras. Roberto Piva é uma das figuras centrais desse grupo e acaba de ter sua obra completa reunida e publicada pela editora Globo em três volumes: Um estrangeiro na legião (2005), Mala na mão & asas pretas (2006) e Estranhos sinais de Saturno (2008).
Após uma negociação iniciada pelo amigo e poeta Claudio Willer chego na residência de Roberto Piva, no bairro Santa Cecília, São Paulo, para entrevistá-lo. Já na entrada ele mostra um carimbo com o gavião de penacho. E diz: “O Oswald de Andrade, no Manifesto da poesia pau-brasil, disse que esquecemos o gavião de penacho, eu não esqueci, aqui está o meu”. Fala certeira! Com mais de 70 anos e uma briga árdua contra o mal de Parkinson, Roberto Piva continua um poeta de personalidade e agressiva. Nesta entrevista ele nos fala um pouco sobre sua trajetória, sobre poesia, xamanismo, literatura, política.

P – Fale um pouco sobre o grupo dos anos 1960. Você, Rodrigo de Haro, Claudio Willer...
RP – Nós éramos um grupo de amigos. O nosso grande trunfo era a leitura. Líamos muito. O Oswald de Andrade, no “Manifesto da poesia pau-brasil”, diz que esquecemos o gavião de penachos. Eu não esqueci, fiz um carimbo em que coloco o gavião de penacho. Eu não esqueci. Voltando ao encontro que tivemos naquela década, posso dizer que foi um encontro muito proveitoso, muito rico em farras, em leituras, em trocas de experiências, de bibliografias, de discos. Eu, por exemplo, ouvia muito jazz, ainda ouço. Então trocávamos todo tipo de informação. Aproveitávamos o saber do outro. Esse é um grupo, podemos dizer assim, que enriqueceu pela troca, pelo apreço ao outro e pelo apreço exacerbado à vida. Vivíamos intensamente. Foi uma belíssima junção de pessoas de espírito de escrever diferente, mas que congregaram a partilha da poesia.

P – Vocês fizeram uma releitura do modernismo brasileiro e trouxeram o surrealismo para o centro da discussão poética.
RP – O surrealismo está presente em toda a minha obra. A linha mestra da minha poesia passa pelo surrealismo, contudo não podemos esquecer do futurismo italiano e do futurismo português, sobretudo Fernando Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros.

P – Seus dois primeiros livros, Paranóia e Piazza, já apontam um poeta maduro. O mesmo ocorre com o Willer de Jardins das provocações e do Rodrigo de Haro de Amigo da labareda. Contudo, nos últimos anos é que vocês vêm recebendo uma melhor acolhida da crítica e das gerações de novos poetas.
RP – Octavio Paz já disse que a poesia é uma arte minoritária. E nesse sentido a força do que escrevíamos atingiu porque tem dinamite própria. Nunca fizemos concessões. Tínhamos como referência, além dos surrealistas que você já apontou, a Beat Generation que nos marcou profundamente tanto pela poesia ácida e voraz quanto pela atitude em relação ao mundo da experiência.

P – No livro Ciclone você diz que “os poetas têm que deixar de ser brocha para ser bruxos”. Qual o real significado desse trocadilho?
RP – É a minha rechaça ao racionalismo absoluto que se instituiu na poesia brasileira. Tem poeta que disputa o título de mais racional, pode? Veja o que o Pasolini nos diz sobre isso:

Grido, nel cielo dove dondolò la mia culla:
Nessuno dei problemi degli anni cinquanta
Mi importa più! Tradisco i lividi
Moralisti che hanno fatto del socialismo um cattolicesimo
Ugualmente noioso! Ah, ah, la provincia impegnata!
Ah, ah, la gara a essere uno più poeta razionale dell’altro!
La droga, per professori poveri, dell’ideologia!
Abiuro dal Ridicolo decennio.


Ou seja:

Grito no céu onde embalou o meu berço:
Nenhum dos problemas dos anos cinqüenta
Me importa mais! Traio os lívidos
Moralistas que fizeram do socialismo um catolicismo
Igualmente tedioso! Ah, ah, a província empenhada!
Ah, ah, a competição para ser o poeta mais racional que o outro!
A droga para os professores pobres da ideologia!
Renego o ridículo do decênio.


Sou aquele que bebeu em Rimbaud, Artaud e Blake. Quero dizer que bebi do delírio do verbo de cada um para estremecer a estrutura da minha própria poesia. George Bataille também alerta sobre o lugar de onde vem a verdadeira poesia: “a verdadeira poesia se encontra fora das leis”.

P – Podemos voltar à questão dos poetas bruxos X brochas?
RP – Nós, por exemplo, somos bruxos e não brochas. Você falava há pouco sobre o nosso grupo. Aquele foi um momento muito forte da poesia e da literatura. Os bruxos estão soltos aí.

P – Embora o misticismo esteja presente em outros livros seus, é em Ciclone que o Piva místico mais se revela.
RP – Ciclone é um livro que me impressionou porque, depois que eu publiquei, começaram a existir ciclones em algumas partes do Brasil. Parece que a poesia se fez profecia e saiu do livro para devastar a terra. Essa desordem chegou mesmo a me apavorar. Mas você tem razão, porque nesse livro está o pacto da minha experiência com o xamanismo. Eu estudei muito o xamanismo e vivenciei experiências xamânicas. Eu fiz parte de grupo junguianos. Eles, inspirados em mim, organizaram a Fundação Paz Geia, da Carminha Levy. Fiz parte de outros grupos também e ainda fundei um grupo só para mim. No meu último livro Estranhos Sinais de Saturno, eu começo com a seguinte epígrafe: “Xamãs de todo o mundo, espalhem-se”.

P – Como você definiria um bom poeta? O que um bom poema tem que ter?
RP – Um bom poema só vai ser bom se aliar emoção à poesia vivida. O Vinícius de Moraes já dizia que “nenhuma concessão à poesia não vivida”. “A poesia é subversão do corpo”, diz Octavio Paz. Então um bom poeta é aquele que ilumina a vida via verbo.

P – Sua poética reflete essa visão da poesia vivida. Há de algum modo a busca por trazer para o poema a primeira pessoa singular, o “eu” poético.
RP – A poesia na primeira pessoa do singular é uma influência do Whitman, do surrealismo e da Beat Generation. Eu tinha uma tia que morava nos Estados Unidos. Então eu mandava uma carta com o nome de alguns livros e ela me enviava. Eu pedia também discos do Miles Davis, do Coltrane. O surrealismo é de uma importância fundamental para o nosso grupo. O surrealismo é tão importante para história da literatura que o Octavio Paz, antes de ganhar o Nobel, declarou na ONU que o século não será conhecido como o século do marxismo, mas como o do surrealismo.

P – Graciliano Ramos disse que todo escritor acaba escrevendo sobre si mesmo. É assim com você?
RP – Claro, essa era a visão do Nietzsche também. Todo mundo no fundo está escrevendo sua própria biografia. Vai e volta e ele acaba caindo no imenso poço que é a existência. Minha obra é, sim, o meu espelho.

P – Por que tanta bronca com o socialismo?
RP – Sou monarquista desde 1958.

P – Mas o que o incomoda tanto no socialismo?
RP – Incomoda o fato de ele ter se transformado num catolicismo tedioso, repetindo Pasolini. Como isso não me atrai nem um pouco, eu pesquiso outras realidades políticas.

P – O que o atrai tanto no monarquismo?
RP – Na monarquia me atrai a extrema hierarquização da cúpula, porque ela permite a maior anarquia das bases.

P – A editora Globo acaba de reunir a sua obra completa em três volumes. Como você recebe a acolhida?
RP – Eu mereço. Afinal de contas estou na batalha, na guerrilha poética, faz muitas décadas. Eu recebo a acolhida como uma consequência natural do meu trabalho.

P – Você ainda se comunica com muitos poetas daquele grupo de 1960?
RP – Eu falo muito com o Claudio Willer e com o conde de Haro, por telefone. Temos muitas lembranças daquela época. Eu conheci pessoas brilhantes naquele período, pessoas excepcionais. Uns morreram. Outros desapareceram. Nós estamos firmes.

P – Se você tivesse que escrever uma carta a um jovem poeta à maneira de Rilke, o que diria a ele?
RP – Tenho muita coisa a dizer, seria necessário muito tempo. Simplificando: leiam Blake, Álvaro de Campos, os futuristas, os surrealistas, Artaud bastante Artaud. Porque Artaud seguiu à risca a proposição do Rimbaud de que um poeta se torna vidente. Ele foi um verdadeiro bruxo, um vidente. Ele fez um longo e sistemático desregramento de todos os sentidos.

P – Quais os novos poetas que você lê e recomenda?
RP – A poesia brasileira é muito promissora e múltipla. Posso falar apenas por aqueles que acompanho. Sérgio Cohn, Danilo Monteiro...

P – Você gostaria de dizer algo mais?
RP – Quero agradecer a tua vinda aqui a São Paulo. O teu Estado vive uns momentos difíceis, catastróficos [enchente de novembro de 2008, em Santa Catarina]. Espero que o povo catarinense possa se reerguer e que depois mergulhe na poesia. Estou grato pelo teu interesse pela minha poesia. Espero que possamos nos encontrar outras vezes. Eu estou fora de forma, pois o mal de Parkinson me afeta mais em alguns dias do que em outros.
28/6/2009
Fonte: ViaPolítica/Revista Agulha
URL: http://www.revista.agulha.nom.br/ag69piva.htm
(*)Marco Vasques (Brasil, 1975). Poeta, crítico de poesia. Autor de Elegias Urbanas (2005) e Diálogos com a literatura brasileira – volumes I e II (entrevistas, 2004/2007).
Contato: vasques@sol.sc.gov.br

4 comentários:

Maysa disse...

Oh! querido Lib.
Que prazer esta sua reprodução da entrevista me trouxe.
Grata pela companhia que essas palavras fazem. Fico saudosa, hoje, quase não se pratica o encontro do grupo de amigos que se reunem e leem, discutem, criam...
De toda forma valeu.
Bj
Maysa

LIBERATI disse...

Querida Maysa, tava com saudades de você e suas palavras sempre generosas.
Esta entrevista com o Piva foi muito boa mesmo, grande poeta, vital, amigo da invenção.
bjs

Maysa disse...

Querido amigo Lib, a saudade também passou por aqui.

Estou atravessando um período rico, cheio de expectativas possíveis... e surpresas de todo o tipo: OBRA EM CASA.
Aquela de v. não encontrar nem a alma... empoeirada, de tão escondida que fica!!!
Com isso, felicidade de estar viva, à parte, virei um reduto de antialérgicos etc... Há uma vantagem!a de ter um GATINHO miando, toda noite, em meu peito.
Já dura 1 mes e meio ( a obra) e tem previsão para mais outro tanto! Notícia boa é a que recebi de um parente distante da sua vizinha chavista:a casa dele tb entra em obras e...por 2 meses!

Como vê só a República Brasileira não entra em reformas!
Beijão
Maysa

LIBERATI disse...

Querida Maysa, já me disseram que obra em casa é como botar um bode na sala. Ele vai comer o tapete e "empestiar" toda a casa e como é teimoso não vai querer sair logo. E obra no Rio de Janeiro é sempre meio complicada. Eu cá comigo digo que obra é complicada em qualquer lugar do mundo.
Espero que os antialérgicos funcionem- eu também tenho uma alergia danada que tento controlar faz muito tempo e sei como se sofre com essa danada.
Minha vizinha chavista e seus parentes gostam muito de reformas.
Ela ( minha vizinha) acha que a reforma tem que começar pela Rede Globo. Já me explicou que quer transformar esta nobre emissora num canal só de novelas para entreter os companheiros cubanos que adoram as novelas da Vênus Platinada. Esse é um dos objetivos dela, acho que tem outros por trás. Desconfio que há alguma ironia com o jornalismo feito pelas mídias brasileiras. Mas, deixa pra lá. Eu, cá com meus botões de novo, acho que temos que acabar com as Capitanias Hereditárias no Brasil. Aí acho que a coisa começará a funcionar. Esse loteamento arcaico que inclui até a carrocinha do pipoqueiro da pracinha de Pindaíba do Norte não tem futuro.
bjs