3.10.09

Conto da Tinê: SEM SUZETTE (trecho)


Em surdina, num toca-discos longe da mesa, ouvia-se o final da “Marcha do Leão”, de Saint-Saëns. Com ares de quem vai encerrar o assunto, Adèle-Marie tomou a iniciativa ao anunciar o nome que escolhera enquanto dispunha papéis virados de cujos versos em branco entrevia-se linhas de espadachim contra o tampo rústico em jatobá.
-- “CRÊPERIE DE BERGERAC”.
A essa altura, do aparelho sonoro veio a faixa “Galinhas e Frangos”.
Três se entreolharam. Duas franziram a testa. Uma virou-se para o vazio ao reprimir o riso. Todos tiveram de levar por escrito ideias, se possível com esboço de letreiro – que decidissem de uma vez a marca do negócio!
-- Crap de quem?! – lascou Umbelina, a salgadeira.
-- Cre-pe – explicou, elegante. – Aquilo que todos adoram e chamam de panqueca embora não o seja, pois este não tem recheio, apenas leva calda ou manteiga, quando muito uma bola de sorvete por cima.
Em gestos suaves, Adélia transformou-se. Coincidência ou não, a obra musical estava em “Aquário”. Devo dizer que A.M. é assim desde o colégio Notre Dame, tem horror dos que mascam chicle ou palitam os dentes em público. Ao ir morar no interior, ela acreditava contribuir para o refino da cultura local, ainda que começasse pela ponta da língua até a beleza e a harmonia saírem por olhos e ouvidos. E que ela encontrou inspiração para sua atual proposta em Cyrano – ou melhor, no pasteleiro que definia o medalhão de carne bem feito como ode às papilas gustativas, a ponto de despertar desejos quase incontroláveis no poeta de Bergerac. Arrebatada, ela citou trecho do livro, releu-o como quem repete mais de uma vez o prato de entrada a fim de, como preliminar, revelar temperos escondidos. Havia em sua voz certa volúpia despercebida pelos ouvintes.
-- Adelinha, - ponderou Sinésio – o povo daqui só entende português. Estamos em terras de Guimarães Rosa...
-- T’aí, que tal “REGALOS DO MIGUILIM”? – cortou brusca Clarinda dos Pingos d’Ouro.
-- Podia ser uma cafeteria com nome em hai-kai: “DO VERMELHO FRUTO / AGRIDOCE / BOM CAFÉ AMANHECE”. Ou apetece. Serviriam os tais crepes com queijo e goiabada. Minissuflês de goiabada com queijo. Bota-de-mineiro com bastante queijo derretido na goiaba – sugeriu Iselda. – E o senhor, Seu Zé Barba, o que nos diz?
-- Olha, dona, eu entendo mesmo é de massaronga, biju e bobó. Gostei do café em versos no alto da porta. Donadélia falou bonito, mas o pessoal vai chamar o lugar de Birosca do Bergeraca...
-- Seu negócio é mandioca no ralo grosso, heim! – Gargalhadas. – Para essas suas especialidades, haja mandiocal! O senhor pode variar com baroa, inhame, cará...
-- Gente, - cochichou Iselda, - pela cara de Adelita, vamos acabar em “SUSIE Q’S PANCAKE”.
-- Ou “TORTILLAS DE SUZANITTA” carregadas na pimenta e flambadas na tequila em vez de conhaque francês. – pinicou Clarinda, ao som de “Fósseis”.

Tinê Soares (25/09/2009)

17 comentários:

ze disse...

uma gostosura. que haja água de graça.

ze disse...

as 'madama' deviam vender joelho e coxinha, com certeza são gostosas. eu compro e como.

TS disse...

ZE, negócio sério não pode ser na base da coxa. Conheço "cigarrette", não "joelho".
O comer não distingue madama de mucama.
Se for aromatizada com frutas, água cobrada.
A questão no texto não é esta.
Abrs, tudibão.

TS disse...

Caro Liber-sessentão, só agora pude me conectar e ver a page.
Como sempre, vc acertou na ilustra.
Adorei a igrejinha na paisagem montanhosa, o cavalo à espera do dono, a vitrola em primeiro plano.
Obrigada, com carinho.

Beijins.

Anônimo disse...

Adélia Maria, Umbelina, Bergerac, Sinésio, Clarinda dos Pingos D´Ouro, Iselda, Zé Barba, um encontro de Guimarães Rosa com o Carnaval dos Animais, eis de volta nossa contista da roça. E olha que ela não estudou no Sacre Coeur, e sim no CSVP - como era chique! BY the way, estou encaminhando o link para a minha amiga Susan. Abç EH

LIBERATI disse...

Texto supimpa esse teu Tinê - literatura sutil, deliciosa,
bjs

josemauros disse...

essa prosa me deu uma baita fome, rs. Que bom ter aparecido...

fernandes disse...

tinê esse dom de escrever não e para quem quer e sim para quem o tem bjs regina

Ed disse...

E eu,na verdade, gostaria mesmo é de ver o conto todo, pq menina, isso dá um curta delicioso (pelo visto, ando lendo sempre com o olhar voltado para a câmera ultimamente - rs). Bjão.

ze disse...

o joelho depois da coxinha é o salgado mais vendido na cidade sebastiana (crivada de flechas) - presunto (não mortadela) e queijo recheio de massa branca. 'Joelhos & Coxinhas' dá uma boa marca.

Anônimo disse...

Andou sumida, preocupei-me, cheguei a pensar "ela desistiu?".
Mlle. estudou no ND mto antes de ir p/ o C. Velho, e de lá foi para o Lycée de L., n'est-ce pas?, acho eu.
Ops, é conto, é conto, pardonnez-moi!

(continuará "à coté"? je ne sais pas)
Félicités.
M.R.L.

TS disse...

Anônimo EH:
o colégio de Père Vincent (saudades mis) era mto mais mineiro q francês; já o ND, era terrivelm/t napoleônico, de doer. O curioso é q fui alfabetizada lá, simultâneam/, em port-inglês, c/ Miss Dayse! O francês entrou só no 3ºano... c/ 'Soeur' Salette; essa não entendi até hoje!
Saudades de nossas bagunças culturais. Obrigada por Susan.

TS disse...

Severino: resta perguntar a cada um: vc tem fome de quê? Eu, por ex., passei a curtir a culinária - ótimo jeito de conhecer a cultura de um lugar.

Ré: devia ter compartilhado c/ vc, às escondidas, as empadinhas d Edith. Hoje, não podemos mais.

ED: vou pensar em seu probl. roteirístico. Mas não prometo.

ZE: Nem "tornozelos"!

M.R.L: Linguarudo! Vc devia agir como um finlandês.

LIBERATI:
Mais uma vez, obrigadinhas, e me desculpe a invasão bárbara. Bjj.

Zininha disse...

E haja criatividade...
Menina! Acho que vai dar crepe este negócio...

Dá gosto de ver sua arte com as palavras...

Minha querida... ainda aguardo as artes de Tetéia e Sininho...
beijos...

Sandra disse...

Até que enfim voltou a nos premiar com sua pérolas literárias e musicais. Crêperie cultural, isso sim, não importa em que matão.
Bjs, Sandra

Lygia Nery disse...

A grande astúcia marqueteira do povo do interior fala alto com seu tom bem humorado e esperto! A propósito, como se pronuncia brainstorm e marketing em interiorês?

TS disse...

LYGIA:
resposta:
brenstormiiiim e marquitiiiiiim,
ou melhor:
1. "chacoalho de côco"
2. "vendedô dos diabo".

ZINA: as hipopotas entraram na fila, sine die.

SANDRA DO ROQUEIRO: matão é animaaaaaal!.