4.11.09

Crônica da Tinê - Bandeirada (ou Cada um tem o deserto que merece)



A mais, ou a menos,
quando o cavalo é muito grande,
desconfio ser o jóquei muito pequeno.


Se minha cidade fosse toda para dentro e nela chegasse um estrangeiro a apontar na direção do rio, “Ali em frente fica o mar” diante da câmera, eu calada deixaria passar com a cara mais lavada do mundo.
Sem falso orgulho, diria às caras amarradas por tal erro que se o visitante confundiu água ribeira com quebramar, sinal de que nosso rio neste Matão é de bom tamanho, deixem-no falar, alegremo-nos. Pois não sucedeu o contrário naquele Matão de fora, caraveleiros deram com os costados numa enseada em certo janeiro e, na pressa em fincar bandeira d’El-Rey e despachar o carteiro, lhe chamaram de Rio de Janeiro? Nem por pouco os caras-pintadas da época (muito menos os que os sucederiam com aerofotometrias) arrancaram as penas da tanga com grito de guerra ou foram em desagravo pichar as naus com seiva de jenipapo. Ao contrário, mantiveram o nome de batismo apadroado pelo santo flechado, Sebastião. Do outro lado de sucessivas montanhas e séculos, perto do rio corrente, eu rio dos destemperados. Arrisco a dizer que entre a marujada quinhentista houve quem amiúde dobrasse a espinha de tanto rir, “Esse gajo Estácio anda nos cascos!”, seja eu Calpúrnia, Benedita ou Índia-Sentada.
Céus, por quê? Por que Nicolas Villegagnon não vingou?! – “Riôôô? Mais où est le rivière ici? C’est ça?! (o fidalgo à procura do tal rio na Baía de Guanabara) -
Quelle merde est Brèsil! Je detèste mon roi!!!” (pragueja de seu cargo). Ou eu carioca desterrada estaria a escrever este arremedo crônico em franco-banzo-tupinambá.
Desliguei monitor, liguei tevê. Assisti a um documentário. Um saudita levara um novaiorquino para passar dois dias no meio do deserto. No início, o convidado ficou maravilhado com o ar dourado, com a vida resistente que pulsava sob o areal, adivinhava (e depois comeu) cobras, escorpiões e lagartos até seus olhos se embaçarem com o tédio escaldante. Foi aí que o anfitrião aos sorrisos caminhou até ele, e num gesto panorâmico disse-lhe “Isso ninguém pintou, ninguém desenhou, foi a natureza quem fez. E nele sobrevive o homem há milênios.” O turista comoveu-se, chegou a esquecer os grãos de areia a entupir-lhe os buracos do corpo e o desejo por nevascas. Ficou agradecido ao outro por mostrar-lhe a beleza no impensável – “Discordar de você não me impede de gostar de você, de respeitá-lo”.
Fui caminhar. Ao passar pela rodoviária velha, ouvi. Não a cacofonia de metrópole, ou o assovio de areias, mas o povo murmurejante de uma cidadezinha avolumado por vozes infantis sobre bicicletas em torno de algo no meio da praça. Juntou gente. Quis ver. Boné, luvas e meias pretas, rosto pintado de prata, o corpo enrolado na bandeira brasileira estava imóvel sobre um caixote. Lastimei não ter a máquina comigo para registrar as caras ao redor. Não entendiam. Fui até lá, disse para o alto “Dura é a vida de artista” e depositei moedas na garrafa ao chão. Diante da plateia arregalada, a estátua-viva moveu-se lenta, cumprimentou-me e, quando eu esperava ganhar balas, recebi um cartão da sorte, que pelo caminho fui lendo.
Uns acertam no casco, outros, na ferradura. Pode ser um comentário generoso a um blogueiro ultramar que desancou uma brasileira, só por ela ter cometido erros topo-ecológicos enquanto falava sobre as belezas de Portugal – pior, se referiu a ditadura de lá por “mais de vinte anos”. Vejamos: do comandante Mendes Cabeçadas a Marcello Caetano, foram 48 anos cravados nos lusos, uma geração perdida junto a colônias em África. Eu diria que o português ofendido, que ilustrou sua crítica com uma pichação lisboeta pouco gentil, subiu nos tamancos. Os brasileiros conhecemos bem a altura de antigos tamancos: uma única tamancada avaria várias cabeças num só golpe.
Da estátua-viva estreante no lado de cá do rio mixuruca - mais que um artista de rua, menos que um artista da fome, um artista do Sétimo Dia - ficou a minha sorte: “Leia 1Jo 2:15”. Agora, se me dão licença, vou catar uma bíblia.
Tinê Soares (15/10/2009)

10 comentários:

TS disse...

ERRATA:
Onde está escrito "E nele sobrevive o homem a milênios.", leia-se:
"E nele sobrevive o homem há milênios."

LIBERATI disse...

Querida Tinê, vou consertar lá no texto mesmo.
bjs

ze disse...

noooossa, que crônica rica!! quem foi mais revolucionário, Zumbi dos Palmares ou Newton, Galileu e Descartes ? o revolucionáro daqui ou os de lá no séc. XVII ? o daqui! a missão guarani ou os mesmos cientistas ? a missão guarani! somando somos mais.

sara disse...

"...sou neto de Caramuru, sou Galdino, Juruna e Raoni" + Zumbi.
bj
sara

Ed disse...

Esta crônica realmente é a mais complexa que já li das que escreveu. Estou aqui pensando no que comentar, mas me senti perdido, acredita? É para ser lida mais vezes. Eu fiquei intrigado com o "certo jornalista português" sobre o que possa ter escrito por inteiro :) Bjos.

Anônimo disse...

Círculo rico.
Os Tamoyos (da grande família Tupinambá) eram chegados à França Antártica, mas a França não queria compromisso conosco, só passar a mão no que estava à frente, o fácil.

Estereótipo.
Portugal "meu avozinho", uma pinoia!
O que pensar dos que ainda esperam pelo Rei-Menino perdido, também Sebastião?
Eles confundem nossa espontaneidade com má-educação.

Melhor curtir o deserto.
Ou as pracinhas de interior.
Somos filhos da mistura, somos ricos de espírito.
Beijos.
M.R.L.

Lygia Nery disse...

Fui consultar o versículo citado para completar a figura, como se fosse a última peça de um quebra-cabeça. Mas o capítulo 2 do livro de Jó só tem 13 versículos... Então supus que fosse o capítulo 12, já que há "1" antes do "Jó".
E era, não era?
Conviver com a diferença não é confortável. Frequentemente há conflito e frustração quando a resposta do outro não encaixa, quando o interlocutor não entende a idéia ou mesmo a inflexão que expressamos.
Entender o universo dos outros é uma grande arte, menor apenas do que a coragem que é preciso ter para encarar e admitir os próprios estereótipos e preconceitos.
De qualquer modo, acho que há cada vez menos cortesia e cada vez mais intransigência.
Vamos tomar o antídoto indígena para o veneno da intolerância: vamos nos permitir rir um pouco de nós mesmos.

Elaine de Amorim disse...

"SEm querer fui me lembrar...". Na fronteira da Espanha com Portugal, eu dentro de um ònibus, com a idéia de passar uma semana em Lisboa. Portava minha carteira de identidade espanhola, a qual, para tê-la, é imprescindível o passaporte válido. Na dita fronteira o policial português me fez descer do ônibus porque eu não tinha comigo meu passaporte e me disse meia dúzia de desaforos. Retruquei que há 500 anos atrás, eles haviam entrado no meu país, sem apresentar nenhum documento e que nós não tínhamos exigido nunca nada em troca....
DEpois de carteirar com minha outra carteira de estudante de doutorado da Universidad de Salamanca, me deixaram passar.... nem sempre o preço é pago na mesma moeda, não é?

TS disse...

Caro Liberati:
obrigada pela publicação,
pela correção,
pela ilustração,
mantendo a rima pobre:
deixo-lhe um beijão!
TS

TS disse...

Queridos Zé, Sara, ED, MRL, Lygia e Elaine, agradeço por terem deixado seus comentários, bjj p/ todos.

A msg-sorte se refere ao livro 1 ("Não ameis o mundo. Não ameis o que há no mundo. Aquele que amar o mundo, o amor do Pai não está nele.")

Tbm tive meus contratempos c/ portugueses, o mais terrível foi dentro de um avião c/ um passageiro estúpido (nos dois sentidos).
Prefiro pensar como Liberati escreveu em post mais acima: as águas que nos separam são as mesmas. Mas p/ mim as margens são desiguais... educados e grosseiros existem em toda parte.
11/nov/09