4.4.10

Crônica da Tinê : Coelhada à moda de “João Patú” (trecho)



O relógio atira-se ao chão e abre-se em gargalhadas.”
Érik Satie (*)

(“Run rabbit run, as fast as you can. Don’t look back”; Corra, coelho, corra o mais rápido que puder sem olhar para trás. – canta o coro no jukebox)
Falar para a menina de cinco anos sobre ressurreição, passagem desta para outra ou o significado da morte como extensão da vida faz tanto sentido quanto tentar convencê-la de que os ovos enfeitados vieram da galinha e não do coelho em seu ritual pagão perdido nas eras. A menina olha curiosa para a caixa-cenário em forma de livro aberto, mas reclama zangada, a choramingar, “Roubaram o meu coelho!”
(“I saw a cat by the rabbit hole / you saw a prince from a fairy tale”; Vi um gato a rondar a toca do coelho enquanto você via um príncipe encantado. – canta o coro no jukebox)
As páginas mágicas abertas em par – à esquerda, o Gato de riso safado, à direita, o Coelho escravo das horas – não apontaram o ladrão da guloseima festiva, um coelho de chocolate retirado do cestinho que a menina levara dias para colorir e montar. Pela posição da menina dentro da sala, a atração (o livro) veio pela direita e a traição (o roubo), pela esquerda. Se o livro-cenário era um espelho, os lados se inverteriam: o Coelho fugiria pela esquerda, o Gato chacotearia na direita, a menina teria mentido para ganhar um doce a mais, dramatizaria a própria invenção ao verter lágrimas. Em sua percepção fictícia a menina se via como reflexo de Alice que, por um desses conceitos modernos dos físicos rodeados por lentes-fórmulas-relógios digitais relativos às dobras do tempo, também ela seria a Rainha. Não sei mais em que lado estou desse espelho! Sei apenas que a menina falou a verdade, eu-Rainha-menina-Alice fomos as únicas dentre as crianças a não devorar um coelho, que estou bem aqui mas boa parte de mim permanece lá, e que nada no mundo é absoluto – o melhor espelho, inclusive, pode quebrar-se.
(“Run rabbit run / but what’s that you’re runnin’ stand for?/ You ain’t gonna run no more”; Corra, coelho, corra, mas para quê se não há para onde ir?– canta o coro no jukebox) (...)
Tinê Soares – 31/03/2010
(*) a respeito das regras de composição

3 comentários:

ze disse...

pois é. o tim Burton fez 'Coraline' como se 'Alice' fora e agora faz Alice para conferir-lhe dramaticidade - gostei do primeiro e verei o segundo. é um grande tema este do sonho que acaba sendo do espelho. o que é a realidade ?

Ed disse...

Estranhamente eu queria ter postado Alice no Cartazes para a Páscoa. Me confundi. Olhei o relógio e achei que tinha trabalhos demais para fazer. Percorri desde a Alice de 1903, passei pela Disney, lembrei-me de Whoopi Goldberg e pensei em Tim Burton. Tantos espelhos refletindo a mesma face, mas tão diferentes umas das outras, que nao consegui. Optei por algo mais "simples": as cores dos Beatles. Desapareci através da pequena porta e o que descobri mesmo é que não adiantou correr :) “Run rabbit run / but what’s that you’re runnin’ stand for?/ You ain’t gonna run no more" Alice ficou para o futuro com o coelho, o gato, o rato, o chapeleiro e todo um mundo fascinante do qual ainda não soube, na verdade, digerir. Beijão. PS: fiz uma baita confusão aqui, né? Quem manda? :)

Lygia Nery disse...

Nos países fantásticos do reverendo Dodgson, habitados pelo non-sense, o coelho da cestinha certamente teria vida própria e talvez tivesse fugido apavorado com o simples olhar voraz da criança.
Caso ladrão houvesse, seria mais louco do que o chapeleiro, já que, por muito menos, teria a cabeça cortada.
Do lado de cá, onde a imaginação é escrava de interesses, os espelhos se quebram e os ladrões graúdos grassam impunes.