8.9.10

Aquela noite em 67 foi do barulho!


Escrevo num só fôlego, acabei de chegar do cinema.(Desculpe se cometer alguma falha ou injustiça) Fui assistir "Uma noite em 67", documentário de Renato Terra e Ricardo Calil. Só digo uma coisa - é imperdível. Se você gosta de música, precisa assistir a esse documentário bem feito. Sempre acho que um documentário deveria situar historicamente os fatos ou eventos narrados - não precisa ser didático de maneira chata. Renato e Calil fizeram isso, de certa forma, não de maneira explícita, mas nos "entrefotogramas" . Confesso que já tinha lido uma boa crítica do jornalista Maucício Stycer , faz algum tempo, e ela me motivou para ver esse filme que me transportou para esta noite precisa - dia 21 de outubro de 1967,- época em que eu era um adolescente fascinado pelo turbilhão cultural que atingiu o pequeno mundo que eu frequentava, - as estações de rádio de Sampa, os shows musicais da TV (O fino da Bossa, Esta noite se improvisa), os filmes de Elvis Presley que passavam no Cine Vera, os discos dos Beatles que tocavam nos bailinhos, competindo com Ray Coniff. Nessa noite memorável eu assisti à final do III Festival de Música Popular Brasileira transmitido pela TV Record em Sampa. Me lembro que vi esse espetáculo pela televisão de um amigo, o Reinaldo, que jogava na linha do time da Paróquia comigo (apesar de recentemente ele não lembrar que jogava comigo) e que também curtia música - nesse tempo minha família não tinha TV e era costume a gente assumir a identidade de "televizinho" - que era o apelido que se dava àqueles que se juntavam na casas dos vizinhos que tinham TV como uma mini-platéia de cinema - numa espécie de comunidade - num saudoso momento de solidariedade eletrônica. Mas essa foi uma noite especial, pois a casa desse meu amigo não era perto da minha casa, juntou bastante gente para ver a contenda dos caras que estavam botando pra quebrar no cenário da música popular. Lembro que o festival acabou tarde e tive que voltar para casa quase beirando a meia-noite- coisa que não era comum naqueles tempos - e olhe que tive que atravessar o bairro inteiro por ruas que ainda não tinham sido contempladas pela iluminação pública.
O que permaneceu dessa noite, durante toda minha vida foi um conjunto de sensações que envolveram a música" Domingo no Parque" de Gilberto Gil e Capinam . Essa música verdadeiramente elétrica, foi defendida por Gil cantando junto com os Mutantes . (Um dia vou contar a história da vez em que carreguei a guitarra dos Mutantes - profissionalmente- é claro).
Percebi, hoje, que existe uma brutal diferença entre você ter vivido a história, mesmo como simples anônima testemunha - e a de assistir a um documentário de um fato que você não presenciou- é como é curioso ver esse momento que recuperado e ampliado para você. É difícil comunicar às pessoas que não viveram esse fato-evento-espetáculo, o que você sentiu. Hoje, no cinema, eu me vi de novo diante da tela (só que maior) assistindo tudo aquilo com uma emoção imensa, ainda perturbado, diante do que aquilo tudo. O que aquilo tudo significou? Aquilo que me impressionou e cativou no "som" novo de "Domingo no Parque" foi a letra de Capinam, composta como uma história contada de forma fragmentada e a música revolucionária de Gil - feito na medida para o som das guitarras elétricas dos Mutantes que mataram a pau com as guitarras distorcidas.
Cabe ressaltar, que nesse tempo, as guitarras elétricas eram absoluta novidade no território da nossa sensibilidade musical melancólica, dos acordes dissonantes de um samba de uma nota só e que naquela época se constituia uma ofensa ao panteon da MPB o uso de um amplificador Fender. Essa rejeição nativa desembocou em ardorosos artigos contra a eletrificação e passeatas reivindicando a abolição das guitarras.(Um fato curioso, o filme pega um flagra de Gilberto Gil em franca contradição como participante de uma dessas passeatas e depois no festival se apresentando com o auxílio luxuoso das guitarras elétricas dos Mutantes. Isso do Gil, vem confirmar um depoimento dele, em que fala mais ou menos isso: que o segredo é saber entrar e sair de todas as estruturas - um pensamento definitivamente moderno (se isso é possível).E olhe que a gente não sabia ainda que nos EUA, nas terras do velho Tio Sam, o movimento era o mesmo - o pessoal da música folclórica americana criticava de forma violenta um jovem de cabelos encaracolados e voz anasalada- que insistia em dizer que alguma coisa estava mudando.
"Domingo no Parque" era o pop-internacional se misturando com uma história prosáica de dois homens simples, trabalhadores que vão a um parque de diversões- e a luta que eles travam por causa de uma mulher - o que a crônica policial chama de o pivô do crime- Pois é, Gil narra um crime passional - e ao que parece os dois eram amigos. Aquela junção pop- com tema de bolero era muita novidade. A novidade estava na forma da narrativa e seus aditivos. Nem vamos falar de "Alegria, Alegria" que também concorria nessa noite. Alegria, Alegria que usa e abusa das colagens de imagens, (uma forma moderna , sem dúvida de tratar a poesia) também sobre uma "plataforma" tradicional de uma melodia típica portuguesa - como entrega Caetano no filme. Alegria,Alegria, é claro que também foi uma explosão, mas para mim, ela foi explodir algum tempo depois. "Domingo no Parque" explodiu a minha cuca primeiro.
Não sei se por algum tipo de manipulação midiática dos donos da bola da Record na época, e de alguns jornalistas, essa noite deixou a imagem de que nela ocorreu o antagonismo do moderno contra o tradicional na MPB. O que é uma imagem errada - já que todos alí apresentavam formas da modernidade. Não se pode dar grandeza a esta noite sem falar de Roda Viva que é obra de gênio e Ponteio. Chico e Edu Lobo fizeram duas obras potentes, modernas, que infelizmente ficaram marcadas como tradicionais, tamanha foi a onda que Alegria, Alegria levantou junto com Domingo no Parque, sacudindo o território da canção brasileira e construindo a base do o nascente movimento tropicalista - (que mais tarde se enriqueceria com o genial inventor Tom Zé e a poesia sacudida de Torquato Neto, mais a diabruras de Rogério Duprat que acabou de entortar o coro dos contentes). Justiça seja feita: temos que falar de Sergio Ricardo que é um grande compositor e que nessa noite teve que enfrentar as vaias que mostravam um pouco do espírito da época, uma raiva que pairava no ar, uma certa urgência e uma certa intolerância em relação ao novo. "Beto bom de Bola" era uma novidade muito complicada para a cabeça daquele povo que vaiava sem parar. Convenhamos que é uma música difícil de ouvir, apesar de se apresentar com roupagem quase de um "pagode" - conta a história do surgimento e decadência de um craque do futebol . O problema estava na música, no arranjo, não era fácil de ouvir - repito. Ao que me parece não tinha condições de enfrentar as locomotivas que Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso e Gilberto Gil tinham botado nos trilhos. Eram músicas que tinham algum tipo de apelo- eram novidades, eram modernas, mas tinham um apelo, um gancho qualquer que seduzia as massas, mesmo as pessoas que começaram a vaiar - estas logo foram dobradas e passaram a aplaudir, como Nelson Mota exemplifica no filme.
Já falei da complexidade do arranjo e agora falo sobre a empatia. Essa música de Sergio Ricardo estava deslocada alí. Havia uma torcida implacável que vaiava - até para estar na "moda", pois fazia parte do ritual essa coisa de vaiar algumas figuras naquele tempo. E parte da platéia cismou com Sergio Ricardo , que , ao que me parece, não teve muita paciência, e não foi simpático em nenhum momento - de certa forma provocou o público exigindo silêncio etc e tal e acabou quebrando o violão e jogando em cima da platéia - tá tudo lá documentado- ele grita: - Vocês ganharam! E quebra- que-te-quebra-violão! Acho que ele demorou demais nas explicações, diante do público que naquele momento se transformava em massa e portanto, só poderia ter um comportamento de massa contagiada. Pois ali o que ocorreu foi um fenômeno típico do comportamento de massa. A vaia - além de se constituir numa moda, era a expressão de várias coisas reprimidas nessa época triste do Brasil de quarenta anos atrás. E olhe que a noite longa de chumbo ainda estava por vir. A serpente ainda estava dentro do ovo Em síntese em 67 , havia muita coisa reprimida, mas havia também uma criatividade imensa, uma vontade , uma energia , lá sei eu que havia. Só me lembro que eu era adolescente e senti no ar aquele vento da mudança que o Bob Dylan cantou um dia.
Só que na sociedade de Bob Dylan (apesar da Guerra do Vietnam) e no resto do mundo a partir daquela época, principalmente em 68 e 69 a roda de Aquarius(*) ia na direção da luta pelas liberdades individuais diante do sistema - era um tal de paz e amor, protestos em todo mundo, enquanto aqui o pau comia na casa de Noca e no México com aquele massacre dos estudantes. Mas tinha muita gente boa, das classes médias que se preparavam para o milagre econômico - gente que ia para Bariloche comprar seus casacos de couro argentino na Calle Florida. Nada contra, mas o chamado "milagre econômico" que nos custou caro depois - foi a válvula de escape do regime de "dietadura". Era a época do Ame-o ou deixe-o, e aí a gente vai e ganha a copa do mundo em 70... Acho que me perdi...
Voltemos ao Festival. Uma coisa que notei, foi como se fumava naquela época! Cáspite!!! Todo mundo fumava desbragadamente, desde os repórteres, até os entrevistados , passando pelos papagaios de pirata. É muito engraçada uma cena em que Chico solta uma baforada na cara , não sei se de Randal Juliano ou Reali Jr. que junto com Cidinha Campos ficaram nos bastidores fazendo a entrevista antes e depois das apresentações dos candidatos. Não sei como não incendiaram o Teatro Paramount (local onde realizaram o festival no centro de São Paulo). Tinha gente fumando até no palco, no encerramento do show. Como os tempos mudaram!
Paradoxal (e Mauricio Stycer já tinha me apontado isso) é o comportamento de alguns participantes, entre eles Edu Lobo e Chico Buarque e um pouco Caetano Veloso nos depoimentos feitos agora , passados 40 anos e em comparação com o que manifestaram na época. Naquela noite, todos pareciam muito animados, nervosos - parece que foi numa noite quente - onde até Roberto Carlos estava meio grilado, ele que - como confessa- já estava acostumado com vários tipos de platéia - e como representante da Jovem-Guarda (os cabeludos etc etal) estava como um estranho no ninho, isto é, no meio das feras da MPB. Ele fica surpreso ao saber que existia até uma tropa de choque organizada para vaiá-lo. Pobre do Roberto, iria defender um samba! Mas é preciso se observar como ele canta bem, a canção sai tranquila de sua boca - de forma natural. O cara é bom intérprete pra caramba! Já era um grande cantor naquela época.
Gil e Caetano, olham para o passado com uma certa nostalgia. Apesar de Caetano falar num tom um pouco blasé da sua antiga Alegria, Alegria, é comovente o seu depoimento, quando ele fala da juventude e dos dias de hoje...
Mas, uma noite em 67 têm muito mais coisas: tem MPB4, Nara Leão, Marília Medalha (curiosa mulher- ótima cantora e compositora que deu uma banana para o sistema estelar daqueles tempos e fez apenas o que queria - e sumiu de repente e reapareceu depois junto com Vinicius numa carreira super-bacana), Os argentinos The Beat Boys, os depoimentos de Sérgio Cabral (pai), Nelson Motta e outros. Ah, Ferreira Gullar estava no júri.
O tema do filme é tão fantástico, que num determinado momento percebi que a platéia do cinema estava cantando as músicas que eram apresentadas na tela (principalmente uma chata sentada ao meu lado) .Isso mostra que aquelas canções permanceram, são imortais e o filme fez o grande favor de registrar aquele momento fabuloso em que elas brotaram...
(*) gosto de usar essa imagem que Elio Gaspari empregou no seu livro sobre o período autoritário em comparação com o que ocorria no mundo lá fora.
(se rolar mais alguma memória e "posto" aqui)
(imagens do filme você pode acessar no seguinte link

http://cinema.uol.com.br/album/uma_noite_em_67_2010_album.jhtm#fotoNav=1)
Para ver e ouvir Gil e os Mutantes no festival defendendo "Domingo no Parque" clique no link abaixo
http://www.youtube.com/watch?v=Zbv3M-AdxC0

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