6.10.10

O matador


(Fui procurar um mantra na minha caixa de e-mail e encontrei um antigo continho besta que saltou e entrou no blogue - agora é tarde - vai ficar aqui)
Nosso herói morava num fim de mundo dessa terra onde canta o sabiá, mas tem lanrause e aipode.
O lugar se chamava Vão de Dentro. Os que não moravam ali eram de Vão de Fora. Entre o "Dentro" e o "Fora" passava a ferrovia, que um dia ele - menino desatendo, atravessou e a maria-fumaça o pegou meio de banda, deixando o infeliz coxo para o resto da vida.
Pode-se dizer que sua trajetória nesse planeta foi primeiramente dividida por aquele vacilo. Mas vida de pobre é igual a um trem mesmo, onde uma desgraça puxa a outra e muita coisa ainda iria correr por aqueles trilhos.
Do acidente surgiu um rapaz contemplativo, retraído, que passou a compor canções guardadas guardou numa caixinha que ele só abria na madrugada, quando a solidão se fazia tremenda. Não adiantou nada o que aprendeu de letras e contas na escola dos padres. Mesmo porque não passou daí, conhecimento miúdo dando pro gasto. Depois caiu num faz nada de dar gosto na esquina da venda. Foi onde abriu seu baú de melodias e cantou , e encantou Mariazinha - pedaço de pecado, toda rebolativa que defilava pela rua principal num uniforme do "Império-Super onde o preço é mais barato e quem manda é o freguês". Essa visão fez dele um canário do reino. Ela se acostumou com aquela voz soltando mel, sorriu, deu bola, e ele um dia - ave canora levantou asas e foi atrás, disfarçando com ginga o efeito balançante da perna prejudicada. Foi querer saber sobre sua pessoa, de onde ela veio, para onde vai, essas coisas de cerca-lourenço. Soube que era nova na vizinhança de "Dentro e que a parentada toda morava na Serra da Peçonha. Passaram a namorar de portão. Certo dia, depois do cinema - onde viram um filme romântico -, ele cantou ao pé- do- ouvido dela uma cantiga que falava numa menina recém-chegada e bem-vinda no coração de um homem marcado. Ela chorou e mudou a vida dele pela segunda vez. No fim da sessão, ficaram de enrosco sob o escurinho de uma árvore, amor derramado nas coxas para não embarrigar.

O menestrel resolveu então logo arranjar emprego, ser alguém na vida e, mesmo meio bambo, virou cavaleiro-andante, vestido numa armadura de mata-mosquito, com toda aquela aparelhagem, caprichava no borrifo. Não tinha cantinho de terreno baldio que não fosse atacado - era pneu, garrafa usada, saco plástico vaso de planta. Em tudo ele metia o veneno. Era uma guerra dele e aquelas pragas voadoras e seus violinos infernais. Matava os ovins. Pena que só trabalhava nos bairros melhores da Capital e ela não podia ver sua exibição.
Para as amigas do supermercado, onde era caixa, ela dizia que seu namorado era um temido matador das encruzilhadas, que tinha pacto com o demo e oscambaus.
- Cruz-credo, Mariazinha! E você tem coragem de ficar com um homem dessa profissão? Ela demorava um pouco no gozo da mentira inocente, mas logo desfazia a brincadeira, antes que virasse boato rumoroso e dizia que, na verdade, ele era incapaz de matar uma mosca, mas mosquito matava demais.

O amor deles foi crescendo, embora agora morassem longe um do outro. Ele mais quatro irmãos de desgraça numa casinha da prefeitura e ela naquele perdido Vão, não importa se de Dentro ou de Fora. O rapaz não pegava condução, tinha uma kombi que o levava para o serviço dividido por zonas. Ela tomava trem e mais um ônibus. No trajeto, dormia e sonhava coisas que não contava para ele,pois morria de vergonha.

Mesmo assim cheio de adjetivos , o namoro foi firmando. Mas, no meio do romance, chegaram as más notícias: ela se estressou com um cliente mal-educado, que fez escândalo na hora de pagar a conta para a qual não tinha o numerário suficiente no momento. A corda arrebentou do lado mais fraco - sabe como é, cliente sempre tem razão, principalmente se possui dinheiro em casa e telefone celular para chamar a empregada, que trouxe o vil metal, o qual foi devidamente esfregado na cara do gerente. Este último, cheio de ódio de classe oprimida, subiu a serra e para lá mandou Mariazinha, com um putaqueopariu que se ouviu na Estação de Tranca-Cego, no caminho de Tapera Caída e atrapalhou o sono de Alcebíades, que não tem nada a ver com essa história.
O rapaz, por sua vez tomou um pé-na-bunda assim que a onda dos mosquitos passou, agora era esperar o outro ano para ver se a praga do Egito voltava e com ele o empreguinho perdido.
Como não tinham nada para fazer resolveram noivar e assim afastar a maldade das reparadeiras do lugar. Ela levou o matador para casa e apresentou à família.
Foi recebido com um almoço daqueles que deixa o sujeito triste, pedindo rede para dormir.
Oficializou-se o noivado, com discurso e lágrimas e goiabada.
Depois do cafezinho, como não havia rede, ele sentou mesmo numa cadeira de balanço lá no alpendre, fumou um cigarrinho, tirou um cochilo. Todo mundo aos poucos foi se retirando. Os pais da moça sairam de fininho para o quarto e Mariazinha, muito cansada, adormeceu na sala, onde a TV chegou a chiar. Quando acordou, o sol nascia depois do galo cantar umas cinco da paradas de sucesso. Procurou seu noivo, e ele estava no mesmo lugar a se balançar, com um sorriso comovente e cheio de sereno. Queria saber a que horas saía o café da manhã. Tem gente que garante que ele nunca mais se levantou daquela cadeira. Largou os mosquitos, sua fama de mau, e, hoje, mesmo com poucas letras na ideia, só mata mesmo é o tempo queimando a mufa com umas palavras cruzadas que Mariazinha traz da banca de jornais que fica perto do seu trabalho: o "Super Barateiro" - onde a alcatra está dez reais o quilo.

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