22.12.10

Conto de Natal: A ceifadeira e as astúcias



(Volto à tradição do blogue de procurar escrever uma história de Natal - necessariamente um conto que denominei "conto sujo de Natal" - em geral uma história triste. A deste ano foi colhida numa feira, não tenho idéia de quem seja o autor - espero que gostem- no final das contas ela não é tão triste assim).


"...os poetas e religiosos estão acostumados a argumentar que se um indivíduo compara o tempo, bastante considerável, que ele está condenado a passar morto com o tempo relativamente breve que lhe é permitido para pavonear-se e aborrecer-se neste mundo, ele pode muito bem encontrar razões para encarar o conjunto de sua vida como um jogo fatal de curta duração, cada segundo do qual deve enchê-lo de ansiedade sobre como ele pode usá-lo. E na verdade, nosso tempo um tanto breve está escoando, mas parecemos prender nossa respiração por segundos e minutos dele".
(trecho do livro Where the Action is de Erving Goffman citado em "As consequências da Modernidade" de Anthony Giddens)

Não vou aqui fazer balanço de nada. Não sou empresa. Acho Natal uma data triste. Sempre falta um na mesa na hora da ceia. E tem gente que nem ceia tem , nem presente, só solidão.
Então apenas vou contar uma historinha que ouvi na feira,no sábado passado, contada por um cabra muito engraçado que vende todo tipo de pão e bolo aqui nas redondezas. Não espere um texto elaborado, ele vai de prima, sem a bola tocar no chão - e claro sofreu uns acréscimos para engordar um tiquinho a fabulação.
Estava encostado na barraca das bananas quando vi um trio elétrico, não daqueles que agitam o carnaval de Salvador, mas três sujeitos que se sacudiam de rir num papo animado totalmente alheio ao ambiente mercantil da feira.
O tal dos pães começava uma nova anedota - eu a classifiquei assim.
Fez cerimônia, falou que aquela era a saideira e não era muito gozada não.
Disse que um dia Dona Morte, essa ceifadeira eterna, já perdida de memórias de quantos já levara para a definitiva travessia, uma senhora realmente sem noção, resolveu ao léu visitar um sujeito numa cidadezinha do interior conhecida pelas astúcias de seus habitantes. Bateu na porta, com toda educação e deu de cara com a patroa do indivíduo. Esta logo tratou de enganar a dama das trevas contando uma história que o marido não estava, que passasse outra hora. Antes de se retirar,só para confirmar Dona Morte perguntou sobre a aparência do cabra:
-Seu marido é um tal magrinho, cabeludo e barbudo que não toma banho?
A mulher, toda trêmula respondeu que era sim, e quase ampliou a mentira - pensou em dizer que ele tinha ido viajar e que não sabia quando voltava - quase disse, mas ficou com medo de se enredar e ser ela a levada. A ceifadeira encolheu os ombros, num gesto de resignação, e se retirou cabisbaixa e meditabunda - mas não satisfeita. Pensou:
-Aí tem coisa!
Logo que se viu livre da incômoda senhora fatal, a mulher correu para o quarto e mandou o marido sair debaixo da cama dizendo: Hômi de Deus, Dona Morte veio te procurar, enganei ela, mas acho que a danada volta e já tem até seu retrato falado. Trate de cortar esse cabelo, fazer a barba , tomar um banho e botar roupa nova. O marido, verde que te quiero verde, foi logo para o banheiro, se lavou nos pormenores. Raspou a cabeça e fez a barba com uma navalha que tinha para outros fins se necessário. Botou perfume no corpo todo, sapecou talco nos pés. Em seguida sua mulher entregou uma roupa novinha cheirando à naftalina.
-Agora acho que ela não me pega, todo mudado que estou, pensou alto.
A esposa emendou: - Mas é bom não facilitar. Recomendou:- Agora, querido, vá para a igreja e comece a rezar para que essa peste da Dona Morte esqueça sua existência. Acenda uma vela e se agarre no terço.
O homem saiu de fininho pela porta dos fundos, deu uma volta imensa para disfarçar e por fim chegou na praça onde, desconfiado, olhando para todos os lados, se meteu dentro da igreja. Ajoelhou-se na frente do primeiro santo que encontrou e tome ave-marias e padres-nossos, salve-rainhas...
Tremelicava na toada das orações, e tal era sua devoção que não percebeu uma sombra deslizando atrás dele. Era Dona Morte que cansada de esperar nas cercanias da casa do infeliz, resolveu descansar na igreja. Ao penetrar no templo, ela contrariada, falava com seus botões.:- Não é que o infeliz que vim buscar hoje nessa cidade me escapuliu, espertinho ele! Mas eu que não vou voltar assim de mãos abanando para o outro lado. Eu vim buscar um cabeludo barbudinho que não toma banho e vive mal vestido , mas não encontrei o tal. E se não tem o tal, leve o mingau. Olhou para a igreja vazia, só divisou aquele desinfeliz concentrado em se comunicar com o além. A nefanda senhora então comandou: - Acho que para não perder a viagem vou levar esse "pelado"(*) cheiroso e bem vestido que reza feito uma matraca.O desesperado, só pode estar em dívida com alguém. Pois vai ele mesmo.E assim ela levou o duvidoso pelo certo ou o certo pelo duvidoso, não tenho muita certeza.
***
Os três falantes cairam na gargalhada, eu confesso que ri também e nem quis pensar na moral dessa história. Acredito que essa anedota faça parte de algum cordel. Se não fizer, está nos trinques para se cantar numas feiras, mas não essa de Laranjeiras. E não é que até que rimou!?
Feliz Natal para todos.
(*) careca lá pelos lados no Nordeste do Brasil

2 comentários:

Maysa disse...

Querido Lib
Olha que esse, até agora, é o melhor conto de natal que li!

Bom Natal e parabéns pela história muito bem recontada.
bj
Maysa

LIBERATI disse...

Querida amiga Maysa, eu só recontei, na verdade a história é que é muito boa - me lembrou um bom cordel.Sabedoria popular que se troca nas feiras deste Brasilsão.
bjs