14.12.12

O canibalismo amoroso visto por Affonso Romano de Sant’Anna

(Segue aqui um texto, sempre saboroso de Jorge Sanglard sobre o sempre poeta, Affonso Romano de Sant'Anna)
Aos 75 anos, o ensaísta, cronista, poeta e jornalista brasileiro, Affonso Romano de Sant’Anna, lança o livro “O canibalismo amoroso” (Rocco), um mergulho fundo na história do desejo masculino e da representação do feminino, tendo a poesia brasileira como guia. Um dos intelectuais mais influentes no Brasil contemporâneo e sempre antenado com as lutas de seu tempo, o escritor denunciou a ditadura militar, entre meados das décadas de 1960 e 1980, se colocando como uma voz indignada contra a opressão e a favor da liberdade. Sua geração viveu a utopia e o seu avesso, e Affonso Romano tem declarado enfaticamente que é necessário rever o século XX, com todos os sonhos e equívocos, caso contrário o país não entrará no século XXI. A função do intelectual, para ele, é interferir na história e no cotidiano. O mundo tornou-se mais complexo e a cultura da pós-modernidade, na sua visão, é o culto do superficial, da cópia, do marketing, da fragmentação e dos falsos valores. Incisivo, afirma: literatura é vida. E, assim, a literatura tem sido seu compromisso de vida.    Fruto de ampla e rigorosa pesquisa iniciada em 1974 e que durou uma década de estudos, este novo livro de Affonso Romano é um convite à reflexão sobre as fantasias eróticas do homem comum. Afinal, argumenta o autor, se a história do homem é a história de sua repressão, estudar o desejo e a interdição é uma maneira de penetrar melhor nessa mesma história e de revelá-la. Os títulos de cada capítulo do livro sintetizam bem a empreitada assumida pelo autor: “A mulher de cor e o canibalismo erótico na sociedade escravocrata”; “Da mulher-esfinge como estátua devoradora ao striptease na alcova”; “Do canibalismo melancólico sobre o corpo da amada morta à eroticidade de Lúcifer”; “Manuel Bandeira: do amor místico e perverso pela santa e a prostituta à família mítica permissiva e incestuosa”; “Vinicius de Moraes: a fragmentação dionisíaca e órfica da carne entre o amor da mulher única e o amor por todas as mulheres”.    O escritor declara que este é um livro de história, em que o personagem principal é o Poeta-Édipo diante da Mulher-Esfinge. E dá uma pista: “adianto que este não é um estudo psicanalítico de autores, mas de obras e textos”. Na verdade, Romano de Sant’Anna revela que está preocupado em localizar, nestes textos, os sintomas que revelam o inconsciente da escrita. Assim, ele está interessado no inconsciente dos textos em questão. E esclarece que esse inconsciente surge como sinônimo de ideologia. Portanto, entender o inconsciente dos poemas estudados no livro é entender o inconsciente de uma comunidade e sua ideologia amorosa.    Para Affonso Romano, o poeta é o xamã que, ao invocar suas alucinações, faz com que, através delas, toda a coletividade reviva seus fantasmas. Com isso, o livro é também “a história da representação do corpo nos (des)encontros amorosos. O corpo feminino ocupa grande parte do discurso no livro, enquanto o corpo masculino é silenciado. E, segundo o autor, “reveladoramente, embora o corpo masculino esteja ausente, a voz que fala pela mulher é a voz masculina”. Essa constatação aparentemente simples, na opinião do escritor, provoca “conseqüências graves”.    Affonso Romano enfatiza: “os poetas não inventaram nada. A análise desses textos, sob a ótica psicanalítica, revela um desajustamento entre o real e o imaginário, que confirma a afirmativa de Platão de que desejo é indigência”. A rigor, o autor esclarece, a literatura, como produto cultural, foi sempre o lugar das grandes confissões, porque nela o desejo sempre expôs sua ânsia de realização. Escrever é desejar”, sentencia.    Ainda segundo o escritor, “é espantoso ver (com a ajuda da antropologia, da sociologia e da história) como o medo das mulheres (a misoginia) é uma praga, das tribos mais primitivas às sociedades mais industrializadas. É aterrador como o mito da mulher castradora, o mito da vagina dentada, da mulher-aranha e da serpente venenosa vêm da Antiguidade aos textos mais modernos”. Romano de Sant’Anna afirma que “a história da metáfora amorosa é, em grande parte, a história do medo de amar e da incapacidade de vencer fantasmas arcaicos e modernos. É claro que essa história é a história contada por homens. E, posto que o homem se elegeu como redator da história, escolheu para a mulher o papel do outro, colocando nela a imagem do mal e da desagregação”.    Declarando-se fascinado ao descobrir, nesse período de estudo e articulação do livro, como cada época organiza literariamente seu imaginário erótico, Affonso Romano assegura que preferiu trabalhar apenas com a poesia, por questão de método, mas se poderia desenvolver igual estudo sobre a ficção. E ressalta: “este estudo é interdisciplinar por natureza. A psicanálise é o fio condutor em torno do qual se armam os conhecimentos antropológicos, sociológicos, históricos e literários”. O escritor utilizou tanto de Freud e Jung quanto de Melanie Klein ou Lacan quando julgou necessário e na busca de um discurso de coerência que atravessasse o discurso deles e de outros ligados a essas escolas.    O canibalismo, adverte Affonso Romano, é um traço em nossa cultura muito mais significativo do que se pensa, tendo gerado até movimentos estéticos vanguardistas na Europa e no Brasil no princípio do século XX. Não é à toa, afirma o escritor, que o cristianismo é tido como o representante, no Ocidente, da ordem canibal ancestral. “A ideia do ágape cristão (ceia do amor) e o ritual da hóstia (palavra que significa ‘vítima sacrificial’) são uma atualização de um rito intemporal, no qual deuses comem homens, homens comem deuses ou, então, são dramatizados no sangue dos animais mediadores”.       Uma vida dedicada ao livro e à leitura      Durante os seis anos em que presidiu a Fundação Biblioteca Nacional, entre 1990 e 1996, tendo como atribuição a política do livro e a leitura, Affonso Romano de Sant’Anna assegura ter feito tudo o que se podia para unir o Brasil a Portugal e aos demais países de língua portuguesa. Na Biblioteca Nacional, iniciou a informatização do acervo, criou o Sistema Nacional de Bibliotecas e o Programa de Promoção da Leitura (Proler), espalhando mais de 30 mil voluntários em cerca de 300 cidades brasileiras, e passou a editar a revista “Poesia Sempre”. De 1993 a 1995, presidiu o Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe (Cerlalc), e assumiu a secretaria geral da Associação das Bibliotecas Nacionais  Ibero-Americanas, entre 1995/1996.     Nascido em Belo Horizonte, em 1937, e criado em Juiz de Fora, a partir dos três anos de idade, teve uma infância de menino pobre, trabalhando desde cedo como carregador de marmitas e de trouxas de roupas para lavadeiras, além de vender balas no colégio e no cinema para pagar seus estudos. No Grupo Escolar Fernando Lobo e no Granbery, iniciou a paixão pelos livros, que encontrava nas bibliotecas do Serviço Social da Indústria (Sesi) e do restaurante popular do Saps, em Juiz de Fora.      Como filho de pais protestantes, foi criado para ser pastor e, aos 17 anos, já pregava  o evangelho em várias cidades do interior de Minas Gerais. Mas o jornalismo e a literatura falaram mais alto. No entanto, essa experiência foi decisiva para impregnar de forte conteúdo social sua prosa e sua poesia e, já em seu primeiro livro, “O Desemprego da Poesia”, um ensaio lançado em 1962, apontava o rumo da indignação. Seu primeiro livro de poesias, “Canto e Palavra”, foi editado em 1965. Durante dois anos, lecionou Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e em 1968 voltaria aos Estados Unidos como bolsista do International Writing Program, em Iowa, onde permaneceria por dois anos e vivenciaria as transformações de comportamento que marcaram o século XX. Ao retornar ao Brasil, em 1969, defendeu a tese de doutorado “Carlos Drummond de Andrade, o Poeta ‘Gauche’, no Tempo e Espaço”, na Universidade Federal de Minas Gerais. Editada em 1972, esta tese deu projeção ao escritor, que conquistou importantes prêmios literários brasileiros.      Intensificou na década de 1970 sua atuação como professor na Pontifícia Universidade Católica (PUC) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, em 1976, articulou a vinda ao Brasil de renomados conferencistas internacionais, em plena ditadura militar, com destaque para o sociólogo francês Michel Foucault. Ainda nesse ano, voltaria novamente aos Estados Unidos e lecionaria Literatura Brasileira na Universidade do Texas. Dois anos mais tarde, já na Alemanha, lecionou Literatura na Universidade de Colônia, e lançou o livro “A grande fala do índio guarani”. Em 1980, lançou o livro de poesias “Que país é este?”, que ganhou repercussão após o “Jornal do Brasil” publicar o poema homônimo. Na França, como professor visitante, lecionou durante dois anos, na Universidade Aix-en-Provence. E, a partir de 1984, passaria a escrever no “Jornal do Brasil” a coluna anteriormente assinada por Carlos Drummond de Andrade. Em 1986, saiu publicado seu primeiro livro de crônicas, “A Mulher Madura”.      Desde o final dos anos 1990, o escritor vem doando parte de seu acervo de livros para a Biblioteca Municipal Murilo Mendes, em Juiz de Fora, Minas Gerais, e atualmente negocia com a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) a transferência do conjunto de sua biblioteca para a cidade mineira. Affonso Romano escreve uma coluna de crônicas, aos domingos, no caderno “Em Cultura” do jornal Estado de Minas. (Jorge Sanglard é jornalista e pesquisador)

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