12.9.16

Caricatura de Roberto Bolaño. Texto: O muito pouco que posso falar dele

Li só três livros de Roberto Bolaño, até agora: Estrela distante, Amuleto e Os detetives selvagens.
Confesso que a prosa dele me seduz e ao mesmo tempo me incomoda. Não sei explicar isso direito. Rola sempre a sensação de que estou sendo levado por um vale sombrio e que de uma hora para outra um terremoto vai derrubar tudo. Não há como negar que esse autor é habitado por um profundo desencanto, disfarçado de ironia, de grosso e fino humor, de sacadas vindas do mundo pop mescladas com tiradas poéticas.
Um desencanto, a princípio com o andar da carruagem desse mundo cruel, e um misto de esperança de redenção pela literatura, principalmente a poesia, mas uma raiva de como ela tem se comportado, tem desandado a não cumprir sua missão. Pode-se dizer que há nele uma crítica embutida da "modernidade" e mesmo da instituição da "crítica da modernidade", dos gigantes monumentais modernos e dos movimentos nanicos, "alternativos". Com sobejas razões, ele destila um pessimismo cósmico. Seu país foi assaltado pelo crime de um golpe de Estado brutal contra Allende, viu seus amigos serem presos, torturados e assassinados, conviveu com aqueles que se exilaram, assistiu como muitos se perderam nesse caminho. Como muitos enlouqueceram. Escutou, no México, onde viveu por algum tempo, os relatos dos que sobreviveram à ocupação do campus da UNAM (Universidade Autônoma do México) e do Massacre de Tlatelolco, de 2 de outubro de 1968, ocorrido na Plaza de las Tres Culturas. (Não se sabe até hoje o número certo de mortos, alguns falam de milhares).
A experiência mexicana inspirou Amuleto(*). Parece que ele diz que nessa terra banhada de sangue (sempre sacrificial?), de alguma forma está presente o sintoma de uma doença. E ela pode nos matar, seja pelo excesso de bebida, de drogas, de remédios e de loucura sem método.
Há nele, é evidente, uma crônica desse exílio, dessa perda de "raízes" dentro de sua própria terra, dessa perda de perspectiva, dessa perda de transcendência e de toda uma geração e de todo um continente (A Grande América Latina), uma constatação de que somos muito pobres, muito desesperançados, e ao mesmo tempo muito inocentes diante de um mundo em que máquinas ocultas põem em movimento engrenagens que fabricam labirintos e sarjetas.
No entanto não cai no caminho fácil do discurso de vítima, mas existe nele, é claro, uma narrativa da decadência desses párias e que acredito seja uma crônica da decadência universal da "condição humana" – bote aí, do fim das utopias, uma raiva delas terem existido. Em particular, na suas obras, essa decadência afeta quase todos os seus personagens, egos sonhadores, sujeitos que se dão mal com seus desejos, mulheres que perdem os dentes, jovens e velhos que perdem a saúde física e mental e se metem em viagens obsessivas, paixões sem eira nem beira. Gente metida meio no sonho e meio naquilo que se pode chamar de realidade, um lugar chato que se disfarça de emprego, carreira, trabalho fixo em meio ao desemprego generalizado. No fundo existe uma crítica dos ciclos de crise econômica sem fim, que tornam a América Latina cada vez mais pobre, embora ele não seja um panfletário, nem um herói no estilo de Galeano e as veias abertas de sua América. Há uma tendência de escapulir também do exotismo que cisma em brotar no solo da literatura latino-americana. Há também uma crítica das igrejinhas: num trecho de Os Detetives selvagens (Companhia das Letras, 2009), uma jovem poetisa esbraveja com outra dizendo que "a literatura mexicana, provavelmente todas as literaturas latino-americanas, era assim, uma seita rígida em que era difícil obter perdão" (pg 382).
Apesar de que ele, lá em alguma linha do final, rabisque alguma esperança mínima – ela, esta ilhada, tão esgarçada, tão perdida nas sombras daquele vale sombrio (bíblico) que a gente pode até esbarrar nela e não perceber.
Isso é o muito pouco que posso arriscar dizer a respeito da obra dele, afinal só li esses livros e não conheço seus outros textos. Falei apenas do problema que tenho com a leitura que fiz desses três romances. Apesar de ter sentido esse mal-estar nos dois primeiros escritos dele, principalmente em Estrela distante, recentemente me deparei com Os Detetives Selvagens, e não deu outra: caí de novo na lábia desse magnífico fabulista. É bom que se diga que esse livro é um tijolaço de 622 páginas. Mas ele me levou na conversa e eu fui entrando no enredo do livro, uma espécie de investigação (que usa elementos do romance policial), uma procura "intelectual" de uma poetisa mexicana que tinha inventado um movimento literário chamado "visceral realismo". O livro tem uma estrutura composta, que começa com um pequeno diário de um jovem poeta e suas peripécias dentro do tal movimento "poético", depois se abre uma série de relatos, que mais parecem "entrevistas" de um documentário, que em geral fala da trajetória de dois jovens nos anos /60/70/80… É bom que se observe que ao que parece o cinema tem uma importante influência no modo de narrar dele – não o cinema linear, mas aquele que alterna cenas –, histórias que vão acompanhando a trajetória de dois poetas marginais, os tais "detetives selvagens", em busca errática da poetisa dos anos 30, da qual eles não possuem nenhuma pista, apenas um "poema muito esquisito", enigmático, publicado numa revista caindo aos pedaços, de tão velha. Na verdade, eles mais se perdem em seus delírios pessoais do que acham alguma coisa na busca objetiva dos rastros da musa do tal "realismo visceral".
No final, ele retorna ao diário do jovem poeta num verdadeiro road-movie que não vou contar aqui para não estragar o prazer da leitura.
Um dos elementos que esse autor utiliza em sua prosa é justamente jogar incertezas, desconfiar dos relatos, desestabilizar o leitor, fazendo dele também um detetive que procura respostas e sentidos nessa leitura.
Desconfio, inocente que sou, que fez parte desse jogo um erro monumental, que está grafado na página 491 (Edição da primeira reimpressão 2009, publicada pela Companhia das Letras) (eu prefiro assim), no qual um dos muitos personagens diz: "Então, quando Iñak me falou do tal duelo, pensei que estivesse de gozação, o ardor suscitado por Baca não podia ser tão forte para que os autores resolvessem agora fazer justiça pelas próprias mãos, ainda por cima de forma tão melodramática. Mas Iñaki me disse que não se tratava disso, enrolou um pouco, disse que o caso era outro e que precisava aceitar o duelo (ou muito me engano, ou citou o Nu descendo a escada, mas o que Picasso teria que ver com isso?), que lhe dissesse de uma vez por todas se estava disposto a ser ou não seu padrinho, que não tinha tempo a perder porque o duelo iria ser naquela mesma tarde."
Acontece que Nu descendo a escada é uma obra de Duchamp e não de Picasso.
Se foi uma escorregadela da memória, uma confusão "surreal-cubista", isso não tira os méritos dessa obra que mistura personagens reais e fictícios, muitas histórias, um fluxo insuportavelmente prazeroso de perspectivas… Falando nisso, não perca a parte em que Octávio Paz entra na história.
Observação final: O comentador, quando convidado a escrever umas linhas para dar uma força ao livro, muitas vezes cai na tentação de exagerar. Um deles, na orelha de Os Detetives Selvagens, chega a esse tipo de cometimento: "Era o tipo de romance que Borges teria escrito"… Outro diz que seria "Um fecho histórico e genial para O jogo da Amarelinha de Cortázar"… Menos, menos. Bolãno é uma mistura de muitas influências. Algumas, como já disse, bem cinematográficas, que aparecem em seus bem construídos diálogos. O resto é conversa, muita conversa e nessa conversa a gente vai sendo levado adiante, mesmerizado pela sua prosa poética.
Uma pena que Bolaño tenha morrido cedo, com 50 anos, de insuficiência hepática. Tão longe do seu Chile!
Ah, esqueci de uma coisa, no sábado passado li uma notícia no Segundo Caderno de O Globo que talvez interesse aos “bolañomaníacos”: na quinta-feira, a partir das 18 horas, vai ser lançado, na Livraria Da Vinci, um livro, na verdade, uma coletânea de ensaios, sobre a obra desse autor, organizada por Antonio Marcos Pereira e Gustavo Silveira Ribeiro (publicada pela Editora Relicário). Esse lançamento faz parte de um evento nomeado como Lendo Bolaño no Brasil. Vai rolar uma palestra, uns bilisquetes, talvez um vinho prosecco e o escambau. Espero que seja bem no estilo Bolaño de ser.
(*) Amuleto é um livro autônomo, mas na verdade é uma das histórias que constam no Detetives Selvagens. A história de Auxilio Lacouture que se dizia "Mãe dos poetas do México". A pobre moça ficou escondida por vários dias num banheiro da UNAM (Universidade Autonoma do México), se alimentando de água da pia, durante a ocupação da Universidade por forças militares, em 1968. Bolaño não inventou isso, se baseou numa história real, da estudante Alcira Soust Scaffo- link http://www.laizquierdadiario.com/spip.php?page=gacetilla-articulo&id_article=27191



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