25.9.16

Quem tem medo do Grande Sertão?


(Republico aqui um pequeno ensaio que procura atravessar "Grande Sertão - veredas" para os novos amigos navegantes. Trata-se da atualização de uma "pensata" minha que foi publicada no old JB, de doce memória.) (*)

Quem tem medo de Guimarães Rosa?

Grande Sertão – veredas conserva a aura de obra difícil, diante da qual o sujeito hesita e diz para si que um dia vai encarar. Não é só a aparência taluda do
livro que espanta. Muita coisa intriga, tanto que sua fortuna crítica é imensa.

Apesar de reconhecido hoje como um monumento da língua, teve recepção problemática. De cara foi catalogado entre "ilegibilidades" e mais tarde considerado "um matagal indevassável". Um sujeito zombou: "Ora, onde já se viu sertão em Minas?". Em 1958, uma revista chegou a publicar uma reportagem com o título: Escritores que não conseguem ler Guimarães Rosa. Gente graúda das letras
confessou-se incapaz.

O autor, perto de sua morte, triste, reclamava que tinha sido chamado de aristocrata e acusado de inventar palavras. Lamentou: "Não as invento totalmente. Para escrever Grande sertão passei um mês inteiro no mato, em lombo de mula, catalogando num caderninho o linguajar do povo sertanejo (…). Aristocrata não faz isso".
Suspeita-se que esse livro causou um vasto medo diante da novidade que de fato era. Tanto nos ácidos críticos como naqueles que não o leram. Não podia ser diferente: o romance é uma explosão da invenção, na forma, na técnica e na linguagem. Foi composto como narrativa única e fragmentária do ex-jagunço Riobaldo Tatarana. Seu ouvinte, que nunca intervém, supõe-se que é o próprio escritor, tratado com reverência: "Sabe muito em ideia firme, além de ter cara de doutor".
Às vezes parece que baixou um caboclo freudiano no narrador, e sua fala se torna caudalosa: "A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não se misturam contar seguido,alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância".
O resultado do temor que esse livro inspirou é que várias gerações se privaram da mais rica experiência estética da nossa literatura.

Uma das chaves é saber que Rosa partiu da sua experiência de menino, de soldado, rebelde e médico. Reuniu causos. Um dia revelou como se imantou de maravilhas: "Nós, gente do sertão, somos contadores de histórias desde que nascemos. Contar histórias faz parte do nosso sangue, é um dom de berço que recebemos para o resto da vida. (…) Que mais se pode fazer nas horas livres no sertão (…)
senão contar histórias?" Esotérico, segredou: "Por isso nos acostumamos desde cedo à imaginação e ela se integra em nossa carne e em nosso sangue, fazendo parte de nossa alma, pois o sertão simboliza também a alma dos que o habitam". Numa entrevista comentou o problema que esse lastro precioso lhe trazia: "Disse para mim mesmo que não se pode criar literatura com o material do sertão. Só se pode escrever a seu respeito em forma de lendas, contos em que imperem a fantasia, as confissões pessoais". Conclui-se que Rosa, fiel
à tradição oral de uma espécie de "dialeto geralista", não se deixou prender a uma camisa-de-força. Num outro depoimento o autor deu lições de ourivesaria: "Em primeiro lugar vem o meu método de usar cada palavra como se ela tivesse acabado de surgir pela primeira
vez. Retiro-lhe as impurezas da fala corriqueira e devolvo-lhe seu sentido vocabular primevo. Por este motivo – e este é o segundo elemento – incorporo certas particularidades dialetais da minha região (Minas Gerais) que não constituem parte da linguagem literária.
Incorporo-as porque são peculiaridades originais, que não estão ainda gastas pelo uso e são na maioria dos casos caracterizadas por uma extraordinária sabedoria lingüística".

Grande Sertão é um bazar árabe

Dizem que escreveu o livro suando em bicas; como um médium, incorporou a alma sertaneja. Sua primeira frase é um coice, indica que se entrou num mundo estranho: "Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja". Se o leitor agüentar a pancada, o relato o levará para lonjuras, onde encontrará formas arcaicas de vida. Homens presos a um tempo imóvel-mineral. Até antropofagia inconsciente ocorre, como lembra Oscar Lopes. Num trecho, Zé Bebelo – um dos grandes chefes – intui que topou com gente de outra era quando é indagado a respeito de onde vinha por uns catrumanos. Responde: "Ei, do Brasil, amigo".

Em O narrador, o melancólico Walter Benjamin afirma que a arte de narrar entra num processo histórico de dissolução justamente "porque o lado épico da verdade, a sabedoria está agonizando". A obra de Rosa é, sem dúvida, o testemunho da sabedoria sertaneja, e carrega algo de desespero antropológico em seu registro. Disse uma vez: "Quando não entendo bem alguma coisa, então não vou conversar com nenhum professor erudito, procuro um vaqueiro velho de Minas, qualquer um deles, pois todos são sábios".
Não era uma boutade. Riobaldo filosofa enquanto conta sua história. Arrisca, num certo momento, a entrever certa universalidade: "O sertão está em toda parte… é do tamanho do mundo". Pode-se dizer que foi até picado por uma dúvida iluminista ao tentar desvendar se existe ou não o demônio, ao qual, num certo momento, empenhou sua alma. Riobaldo será um Fausto por amor.
Alguém disse que o Grande sertão se assemelha a um grande bazar árabe: tem de tudo. Captar a totalidade dele é um problema insolúvel. Afonso Casais Monteiro afirmou: "Evidentemente há coisas que só entenderá em Grande sertão: veredas o sertanejo, precisamente o menos provável de seus leitores". Paulo Rónai continua: "Acrescentaria eu que há outras coisas que só o dialetologista, outras que só o filósofo, outras ainda que só o psicanalista entenderá – o que equivale a dizer que nenhum leitor entenderá a obra na íntegra". Observou que o autor trabalhou como cineasta: "Sabe que os detalhes de seus flagrantes só parcialmente serão percebidos pelo público na rápida sucessão das imagens"

O mapa fantástico do Grande Sertão

Diz-se ter Rosa mapeado as andanças de suas criaturas pelas brenhas do sertão. Mas não se iluda: fez isso numa cartografia fantástica.
Antonio Candido cotejou as passagens do livro com os mapas da região, e percebeu o surgimento de "uma impossível combinação de lugares: mais longe uma rota misteriosa, nomes irreais". E que certos acidentes geográficos obedeciam a uma "necessidade de composição". Foi aí que viu a importância do rio São Francisco na trama. Riobaldo chega a dizer que o rio partiu sua vida em duas partes "qualitativamente diversas". O crítico mostra, assim, que na margem direita corre a vida normal e na esquerda, o conflito. Nas passagens entre um lado e outro é que se realiza o destino de Riobaldo e Diadorim.
Mulher disfarçada de jagunço, Diadorim quer se vingar do assassino de seu pai, Hermógenes, mitológico guerreiro que carrega a fama de ter feito um pacto com o demônio. Como numa tragédia grega, precipitará o antagonismo. No desfecho da luta, supõe-se ter eliminado o mal figurado no pacatário. Seria a catarse. Mas os rios para Rosa têm três margens.
Riobaldo não será apenas instrumento dessa vendetta cabocla, apesar de abdicar de seu destino por causa de seu "ambíguo" companheiro: "Diadorim é minha neblina" – ele diz encantado. Chega a acreditar em sina: "A modo que resumo da minha vida, em desde menino era para dar cabo definitivo do Hermógenes". O paradoxo dessa relação é que à medida que se envolve na luta de outro, ele se define, enfrenta o sertão, que não é simples paisagem e sim um tirânico personagem: "O sertão me produziu, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca…". Mas vínculos de fogo inconscientes determinarão sua travessia.

A travessia do Grande Sertão

Riobaldo percebe ser ele a travessia e intui não estar "terminado", terá que se definir em provas. "Viver é muito perigoso", repete. A travessia é uma metáfora da experiência de conhecimento. Tarefa estrambótica para a maioria dos homens simples que vegetam na qualidade de roceiros perdidos no tempo, capiaus sucumbindo às febres e desgraças comuns. Só os grandes senhores com seus exércitos dominam a ciência das coisas. O mundo que o jagunço encantado encontra estruturado à sua frente é o vazio da lei. "O senhor
sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado". Sua ascensão começará, portanto, pelo domínio do rifle. A pontaria certeira vai lhe dar um novo nome: "Tatarana-cerzidor". Mas isso não basta para o confronto com Hermógenes. É preciso fazer o pacto, fechar o corpo. Daí, salta da condição de jagunço bom de mira para a chefia do bando. Sua transformação é festejada: "Uai, tão falante Tatarana? Quem te veja…". É como se depois do ritual tivesse encontrado o dom demoníaco
de usar as palavras, e as astúcias que aquelas permitem engendrar. Nos enfrentamentos do sertão adquire mais valor. Então Zé Bebelo o renomeia ao lhe passar o mando: "Mas você é outro homem, você revira o sertão… Tu é terrível, que nem o urutu branco". Uma nova
etapa se inaugura nessa ocasião: "Agora o tempo de todas as doideiras estava bicho livre para principiar", diz Riobaldo, pronto para o grande embate: "Tinham me dado em mão o brinquedo do mundo". Por outro lado, é curioso notar que Diadorim, ao mesmo tempo que
o cega para seu destino, abre as portas de sua percepção: através dos olhos dela ele vai aprender a ver beleza no sertão.

Uma leitura política do Grande Sertão

Também é possível uma leitura política do Grande sertão, na qual se trata o discurso ideológico como risível: "Ao que Zé Bebelo elogiou a lei, deu viva ao governo, para perto futuro prometeu muita coisa republicana. Depois enxeriu que eu falasse discurso também. Tive de – você deve citar mais é meu nome – falar muito nacional – se me soprou". Ao que Riobaldo acrescenta: "O povo acho que apreciava".
As preocupações do autor são éticas. Oscar Lopes ilumina esta questão ao dizer que (Rosa reabre "edificado por mais de dois milênios e meio de experiência histórica o problema que Ésquilo pensava ter resolvido na Oréstia. Lá a moral gentílica da vingança entre os clãs se resolve absorvendo o último vingador, Orestes, instituindo o tribunal da cidade, passando as Fúrias ao serviço de uma nova forma de vingança". No Grande sertão as coisas não são bem assim: "Nenhumas ilusões maniqueístas sobre o dualismo absoluto do bem e do
mal. O homem continua pacatário". Hermógenes, com toda sua fama de mau, representava uma maldade ingênua, diante de um homem como Habão, que "não sabe olhar para outro homem sem o ver na qualidade de força trabalhadora anônima, reprodutora de investimento". Um estranho Midas na visão do jagunço: "E ele cumpria sua sina, de reduzir tudo a conteúdo. Pudesse economizava até com o sol e com a chuva". O "mal" só mudou de forma, agora é capital, um novo pacto. É o fim da jagunçagem heróica. Riobaldo range os dentes: "Os jagunços destemidos arriscando a própria vida, que nós éramos; aquele seo Habão olhava feito jacaré no juncal: cobiçava a gente para escravos".
O Grande sertão fica distante muitas léguas do maniqueísmo. Seu autor via, por exemplo, Jorge Amado como cativo da ilusão dos contos de fada: "É uma criança que acredita sempre no bem e na vitória dos bons sobre os maus". Para Rosa, nada no mundo estava "definido". O próprio Riobaldo torna-se proprietário. Seu rememorar é a busca de um sentido para tal passagem. A questão pendente é ele não saber que continua pacatário. Seu mundo épico vive só nas páginas de um livro – este sim definitivo. "Nonada" de medo do seu autor. Afinal só "existe homem humano". Travessia.

(*)Esta é uma versão modificada do artigo que fiz com o título As chaves do matagal indevassável, publicado em 1997 no Caderno B, do Jornal do Brasil numa edição dedicada à memória dos 30 anos
da morte do escritor.

NR: Clique nas imagens para ampliar e VER melhor.
A última ilustração desse artigo também foi publicada na Alemanha, (no jornal "Die Welt" (O Mundo) por ocasião do lançamento lá na terra do Goethe de uma novíssima tradução de Grande Sertão. Veja no link https://www.welt.de/sonderthemen/brasilien/article146661881/Ein-Monument-experimentell-und-voller-Raetsel.html

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