2.11.17

Crônica de finados e desafinados


Requiescant in pace (*)
Num dia de finados de alguns anos atrás, comecei a fazer uma pesquisa sobre o tema da morte para cometer uma croniqueta e vi que precisava mais de uma vida para reunir todas as coisas interessantes que disseram sobre esse tema assustador e muitas vezes incômodo (para o mundo moderno - ocidental).
Escolhi então falar da parte amena do assunto. Daí, comecei pelos epitáfios (**), justamente a parte final do processo, talvez a inscrição do último pensamento do defunto (ou dos parentes) na fria pedra da lápide do túmulo e percebi que alguns deles têm lá sua graça.

Comecemos por Ramón Gómez de la Serna que disse uma coisa intrigante: “Ninguém sabe o que é morrer, nem os mortos”. Mas, observe que apesar disso muitos dos clientes dos cemitérios querem deixar alguma mensagem, talvez para distrair seus visitantes, enquanto estão vivos, e passeiam circunspectos pelas alamedas do derradeiro condomínio.
Diz um adágio popular que “o epitáfio é o último cartão de visitas de um homem”. Apesar de existir também aquele antigo ditado francês,“ser embusteiro como um epitáfio”, esse costume foi se enraizando na nossa cultura mortuária e nem sempre elogia o cadáver, ao contrário, muitas vezes ironiza os viventes e o próprio defunto. É o caso do Bispo de Langres, Louis Barbier, que no seu testamento ofereceu cem escudos para quem fizesse um epitáfio bacana. Ganhou o seguinte texto: “Aqui jaz um grande personagem/ Que foi de muito ilustre linhagem/ Que possuiu mil virtudes/ Que jamais enganou/ Que sempre foi prudente/ Não vou dizer mais nada/ Seria mentir muito por cem escudos”.
Alexandre o Grande recebeu um, que fez juz à sua fama: “Uma tumba agora é o bastante para quem o mundo não era suficiente”.
Molière, parece que escreveu seu próprio epitáfio: “Aqui jaz o rei dos atores. Agora se faz de morto e na verdade, o faz muito bem”.
No seu túmulo, Passerat adverte: “Amigos, não encham minha tumba com maus versos”.
O do filósofo Diógnes é muito sarcástico: “Ao morrer joguem-me aos lobos, já estou acostumado”.
O epitáfio do poeta Antonio Espina é uma pérola de embriaguez: “Aqui jaz de boca para cima aquele que caiu de bruços, muitas vezes, na vida”.
Também existem epitáfios inventados; um, feito pelo escritor Max Aub para a tumba de D. Juan, é de morrer de rir: “Matou quem ele quis”. Falando em humoristas, Grouxo-Marx mandou escrever no seu ‘apart-mortel’: “Desculpe-me por não me levantar, Madame”.
Orson Welles, mesmo depois de passar desta para melhor, manteve sua genialidade. No seu túmulo está gravado: “Não é que eu tenha sido superior. Os demais é que eram inferiores”. Miguel de Unamuno, por sua vez, fez também sua última gracinha: “Só peço a Deus que tenha piedade da alma deste ateu”.
Na tumba do compositor Bach está escrita uma mensagem de duplo sentido: “Daqui não me ocorre nenhuma fuga”.
O escritor H.L. Mencken sugeriu um texto final que tem todo o seu humor: “Se depois que eu partir deste vale, você se lembrar de mim e pensar em agradar meu fantasma, perdoe algum pecador e pisque seu olho para uma garota feia”.
Existem os epitáfios profissionais. Por exemplo, o de Benjamin Franklin, inventor e impressor, entre outras coisas, é muito criativo. Diz o seguinte: “O meu corpo, como um velho livro, sem enfeites aqui jaz. Alimento para os vermes. Porém, acredito que aparecerei, em breve, numa nova edição, corrigida e melhorada pelo Autor”.
Na tumba do transformista Fregoli, em Viareggio está escrito: “Aqui ele realizou sua última transformação”. No de um apreciador do ócio: “Aqui Fray Diego repousa. Jamais fez outra coisa”. Outros celebram a guerra conjugal. Em Guadalajara, existe o verdadeiro epitáfio da viúva alegre: “A meu marido, falecido depois de um ano de matrimônio. Sua esposa com profundo agradecimento”. Em contrapartida, em outro cemitério encontra-se a vingança de um esposo insatisfeito: “Aqui jaz minha mulher, fria como sempre”.
Não podemos esquecer daqueles tipo ‘Procon’: “Voltarei para me vingar dos bancos”.
Em Minnesota encontra-se outro que é genial: “Falecido pela vontade de Deus e mediante a ajuda de um médico imbecil”.
Dizem que num cemitério do Rio de Janeiro existe um que brinca com o caráter bélico de seu morador: “Aqui jaz o General X. Transeunte, passe tranquilo. Está morto!”.
Mas, nada se compara à sinceridade da inscrição que se encontra num cemitério da Catalunha: “Levantem-se vagabundos, a terra é para quem trabalha”.
O de Allan Poe, sem brincadeira, supera todos, é a citação do seu famoso poema O Corvo. Realmente é definitivo: “Nunca mais”.

(*) “Descansem em paz”. Palavras do Ofício dos Mortos, encontradas no portal de muitos cemitérios - retirado de Não perca o seu latim, de Paulo Rónai (Editora Nova Fronteira)
(**) Soube que na sua origem, o epitáfio se constituía num privilégio da nobreza.
FONTES: Diccionario Ilustrado de la Muerte de Robert Sabatier (Gustavo Gilli- Barcelona)
www:geocities.com/soHo/studios/72581/epitafio.html-8k , http://platea.pntic.mec.es/~jescuder/epitafio.htm,Epitaph Index(A-Z).
Um leitura interessante é o ensaio histórico-antropológico de Philippe Ariès "História da Morte no Ocidente - da Idade Média aos nossos tempos"

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