
(Continuação- Resenha publicada em 1990)
O Salinger que emerge do livro é uma figura especial. O retrato do artista quando jovem mostra uma espécie de farsante, mas com dupla personalidade: um rapaz sarcástico e subversivo, outro dócil e disposto a colaborar. Exibicionista, quer passar a imagem de quem sabe tudo. É de “uma rigidez antipática, quase ameaçadora, na determinação com que persegue o sucesso”. Perfeccionista, arrogante, superior, é dark de um lado, fino e educado de outro. Na maturidade, ele é um homem que busca transcender questões materiais, procura um grupo de poesia, almeja a inocência perdida, quem sabe, mostra-se um nostálgico, quase um rousseauniano.
Ele era alto, tinha olhos e cabelos negros, deixava as garotas malucas; seu tipo de sedução não era físico, acrescenta Hamilton, mas intellectual. Nesta versão J.D. é uma pessoa de difícil aproximação, que sabe estabelecer o exato limite para os outros. Tinha uma espécie de “ego de aço”. Hamilton, entretanto, percebeu uma quebra nesse objeto complexo e escorregadio, um momento em que sutilmente explode uma crise interna, o que explicaria o seu isolamento e a difícil relação com o mundo exterior. É o mapa dessa crise que ele tenta traçar, enfrentando condições adversas já apontadas.
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Há quem explique a esquisitice de Salinger pela …, astrologia. Ele nasceu no dia 1º de Janeiro de 1919. Com ou sem astrologia, início da era do jazz, que lhe marca a infância. A grande Depressão não parece ter-lhe afetado a adolescência. Seu pai era um próspero comerciante de frios, chamado Sol, “talvez” filho de um rabino, mas casado com uma goym, a escocesa Marie Jillich, que mudou o nome para Miriam, a fim de ser aceita pela família do marido. Sol tinha uma longa barba, “parecia Deus”, recorda um colega de profissão. Hamilton não conseguiu assegurar-se de que Marie foi atriz de vaudeville, mas teve a certeza de que era muito apegada ao garoto Jerry, que cresceu perto do Zôo e do Central Park. “Em 1932”, Hamilton registra, “Salinger, como Holden Caufield, era um garoto rico da cidade grande”.
Em alguns aspectos, o início de sua história parece um pouco com a de Neil, o adolescente do filme “A Sociedade dos Poetas Mortos”, cujo diretor bebe muito nas águas de “O Apanhador”. Como Neil Jerry não estava correspondendo às expectativas do pai, havia tensão entre ambos. Sol “certamente esperava que o filho entrasse para a firma”. O garoto passa por várias escolas, depois se matricula num colégio particular, carom as não muito chique. Salinger declarou que por essa época se interessava por arte dramática , apesar de ter sido reprovado na matéria. Em 1930, durante as ferias, ganhou o prêmio de “ator mais popular” em um acampamento; e antes, no colégio, já havia feito papéis femininos em duas peças. Também mostrou seus pendores literários escrevendo para o jornal da escola.
De repente, em 1934, Jerry é transferido para a Academia Militar de Valley Forge. Fossem quais fossem as razões de seu pai, o garoto viu-se de uma hora para outra em um lugar cuja missão é “formar jovens bem preparados para enfrentar as responsabilidades, alertas, sadios, atenciosos para com o próximo, com elevado senso de dever”. Salinger disse que detestou a escola militar, mas Hamilton observa que as evidências são contraditórias. Apesar do clima pedagógico opressivo, Salinger soube se envolver ao seu jeito com a Academia: foi editor de uma publicação comemorativa na qual elogia o diretor e, além disso escreveu a letra do hino de sua classe, ainda hoje tocado na formatura das turmas de cadetes. Estaria aí um fingidor? Um astuto subversivo disfarçado de bom aluno? Ele se autodenominava “Salinger o Sublime”, mas talvez fosse mais correto chamá-lo “Salinger o Dúbio”, pois nessa época não há dois testemunhos iguais a seu respeito. Fosse isto ou aquilo, o fato é que em Valley Forge ele escreveu seus primeiros contos. (continua no próximo capítulo)
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